ALÉM DA VIDA E DA MORTE - Livro

SINOPSE: Chico Deca é um homem que encara a vida com alegria e desprendimento, embora as inúmeras dificuldades materiais e as restrições de saúde que enfrenta por mais de metade da vida. Acompanhe-o no momento crítico em que após um transplante de fígado, será levado a um ambiente da vida espiritual onde descobrirá a razão de sua última trajetória e porquê teve de partir de forma tão dolorosa.
Um drama bem humorado. Com um final inimaginável.
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Além da Vida e da Morte

Luiz Cezar Carneiro Rodrigues

Revisão: Triciana Farias Pinheiro

1ª Edição – Tiragem: 1000 exemplares

Diagramação: Paulo Jucelino

Foto da capa: Thiago Carneiro





Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - (CIP)

















Agradecimentos

A Jesus, nosso mestre maior, e aos amigos da espiritualidade, pela inspiração maravilhosa que resultou nesta obra.

Muito obrigado.


















Ao meu Pai (in memoriam)






























































“Não existe o esquecimento total: as pegadas impressas na alma são indestrutíveis.”
Thomas De Quincey






Sumário


Algumas Palavras 13
Capítulo I: 1978, o Início 15
Capítulo II: Um Mergulho no Passado 19
Capítulo III: Momentos de Reflexão 61
Capítulo IV: A Despedida 81
Capítulo V: Sessão Comédia 89
Capítulo VI: Passos no Corredor 101
Capítulo VII: Quando os Homens Choram 109
Capítulo VIII: O Telefone Toca 129
Capítulo IX: Relatos de um Novo Mundo 143
Capítulo X: Reflexões Póstumas 171
Capítulo XI: Discando o “0800”. 175
Capítulo XII: Descobrindo um Mundo Novo 185
Capítulo XIII: Uma Presença Inesperada 191
Capítulo XIV: Um Triste Encontro 203
Capítulo XV: Em Nome da Gratidão ..............................213









Algumas palavras

A
presente obra narra a trajetória de um homem em busca da sobrevivência e da realização de seus sonhos. Como qualquer pessoa, ele enfrenta inúmeros obstáculos em sua jornada. Chico Deca, o personagem central desta história, não é alguém famoso, mas apenas uma pessoa comum, como a maioria de nós, porém, alguém especial para todos os que com ele conviveram.
A história que se segue relata a vida de um homem simples, determinado, generoso, bem humorado, que encara a vida sorrindo e a morte de peito aberto. Fora vitimado por uma doença silenciosa com a qual conviveu durante metade de sua vida, mas, apesar desse fato, nunca perdeu a fé e o bom humor para enfrentar todas as situações, por mais penosas que fossem. Um belo exemplo de generosidade, que só as almas iluminadas são capazes de demonstrar.
A história desse pai, marido, amigo e companheiro, é narrada com esmero, no mesmo estilo de “Histórias Dessa e de Outras Vidas”, trazendo momentos de contentamento, ânimo e coragem e levará o leitor aos diversos ambientes da narrativa, provocando as mais variadas sensações, mexendo no fundo do seu coração e provocando emoções que, com certeza, lavará sua alma.
A imortalidade da alma é, mais uma vez, o foco central da história, mostrando a morte como o caminho que a todos conduz rumo a novas experiências, numa outra vida.
Esta obra mostra a beleza da vida em sua forma mais simples e as maravilhas que o amor pode fazer na família e na sociedade quando exemplificados no ambiente do lar.
Uma história para ficar guardada na memória. Para sempre.
O Autor.






Capítulo I
1978, o Início

F
rancisco Isidro Cordeiro era um homem determinado desde que saíra da adolescência em meados da década de 1960. Estatura mediana, 75kg bem distribuídos em um corpo musculoso, forjado pelas ferramentas de uso de lavrador, as quais manuseava com habilidade desde a infância. Para a maioria, era considerado genuíno negro, devido a sua pele morena escura e cabelos crespos. Casara com Meire em 1967, uma moça branca de cabelos pretos, curvas acentuadas, apesar de sua aparência esbelta, o que à época era entendido como pessoa mal alimentada, o que também não era, de todo, um mito. Depois de muito lutarem em vão para vencer o preconceito do pai dela, o qual afirmava preferir vê-la morta a casar-se com um negro, só havia uma coisa a fazer: fugir e casar sem sua permissão, numa prática comum à época. Num dia de dezembro, saíram na calada da noite do lugarejo onde moravam, a pé, rumo à cidade vizinha onde quase ninguém os conhecia, voltando duas semanas depois, já casados. Era a forma mais eficiente de alguém se casar com quem realmente amava naquele sertão onde as práticas guardavam fortes resquícios medievais, em plena segunda metade do século XX. Assim, não havendo nada a fazer, a não ser aceitar a situação, apesar do orgulho ferido, o pai de Meire teve de engolir seu tolo orgulho e abençoar a união, como era costume. Apesar disso, manteve-se por algum tempo afastado do novo genro, com muitas reservas quanto à sua conduta, embora fosse ele o único a reprovar a união.
Acostumado à labuta no sertão, Chico Deca — apelido que herdara em razão de seu pai carregar a alcunha de Seu Deca — não teve qualquer dificuldade para se adaptar à nova vida. Assim, viveram na convivência dos seus parentes até o ano de 1970, quando uma grande seca assolou o sertão cearense.
Retirantes da seca, foram com muitos outros da família refugiar-se em Irecê, na Bahia, onde a desnutrição levou a recém-nascida Rosa Maria, terceira filha do casal, de volta ao lar, na pátria espiritual. Retornando ao sertão cearense em 1972, voltaram à batalha pela sobrevivência e, com a desinformação, associada à cultura da época, que defendia o “crescei e multiplicai”, acabaram formando numerosa família no ritmo de um filho por ano, como, aliás, era a prática comum. Apesar da perda de mais dois filhos para o mesmo mal que assolava aquelas paragens, ou seja, a fome, tinham, no ano de 1978, cinco filhos vivos, todos do sexo masculino, sendo Nilton, o mais velho, com 10 anos de idade, e o mais novo, Régis, recém-nascido.
Naquele ano, como sempre, Chico Deca colocara uma roça grande e, apesar da pouca ajuda que recebia dos filhos mais velhos, ainda pequenos, deu conta do serviço, fazendo uma ótima colheita. Tinha uma saúde de ferro. Pele bronzeada pelo sol escaldante do sertão; aos 31 anos de idade, não havia nada que Chico Deca não enfrentasse.

***
Chico Deca tinha uma irmã, de nome Santana. Ela fora criada de um fazendeiro que havia sido o patrão de seu pai por quase toda a vida. Com o passar do tempo, como não se casara, foi incorporada à família, na qual todos nutriam-lhe respeito e consideração. Na década de 1950, o então fazendeiro tornou-se prefeito da cidade. Muito rico, adquirira inúmeras inimizades por questões políticas. Fizera sociedade com alguns familiares e amigos, fato que o levaria à falência em 1975. Do imenso patrimônio que incluía terras, abrangendo quase um quarto de todo o território do município, restara-lhe apenas uma velha Rural e uns poucos trocados que havia reservado em nome do filho. O resto, os “sócios” lhe surrupiaram numa jogada de mestre. Homem desprovido de maldade, Seu Tonico, como era conhecido, cometera o erro de fazer grandes negócios sem o amparo de documentação legal. Isso o levou à ruína, pois, quando por motivos políticos, houve um racha de opiniões entre os sócios, a desavença tornou-se pessoal, e cada um reivindicou o que lhe era de direito na fortuna, acrescido de uma grande soma indevida. Embora a maioria dos bens fosse de Seu Tonico, quase nada lhe sobrou. Nunca se entendeu por que ele jamais fora à Justiça reivindicar o que era seu. Morara naquela terra toda sua vida. Todos sabiam que era homem idôneo, de bons princípios, excelente pai e patrão. Contudo, deixara os sócios dividirem quase todo o patrimônio entre eles próprios e, em seguida, partiu para a capital para tentar uma nova vida. Talvez estivesse saturado daquela vida provinciana, em que, com exceção de alguns poucos vizinhos e moradores de suas terras, poucos amigos tinha de verdade. Ou talvez estivesse farto das intrigas e da vida agitada que levava, embora fossem aquelas paragens de uma calmaria permanente, onde quase nunca acontecia algo digno de nota. Na verdade, nem mesmo seu filho, apelidado de Vieira, ainda jovem na ocasião, entendera a atitude do pai. Apesar disso, ninguém da família contestou sua atitude. Alguns, na sua cidade natal, afirmavam que ele havia sido ingênuo demais por isso fora enganado de forma covarde, outros diziam que sua generosidade não lhe permitia lutar na justiça para recuperar o que lhe haviam tirado. O fato é que, após aquele episódio, a tristeza tomara conta de sua alma e, dois anos depois, em 1977, foi acometido de infarto fulminante, morrendo aos 61 anos de idade, deixando esposa, D. Alzira, e seu filho ainda jovem, José Vieira, (Dedé para os amigos).
Capítulo II
Um Mergulho no Passado

E
ra início do mês de maio do ano de 1978, quando Santana, a passeio em sua terra natal, visita o irmão, Chico Deca, com uma novidade.
Chico — comentou contente a irmã —, Marcondes, sobrinho legítimo do finado Seu Tonico, é engenheiro, de uma empresa que serve ao estado, em Fortaleza. Ele tem um sítio de aproximadamente 80 hectares na cidade de Pacajus. Está precisando de um caseiro, e pensei em você. Existem duas vacas leiteiras, muitos cajueiros, coqueiros etc. Seu trabalho consistiria em manter as sombras dos cajueiros sempre limpas, os coqueiros sempre regados e cuidar das duas vacas leiteiras, segundo me contou ele próprio. Os detalhes só com ele você acertaria. Se topar, falo com ele e você vai até lá comigo para acertarem os pormenores; inclusive, ele próprio financia a sua ida, mesmo que não cheguem a um acordo.
Chico Deca ficou exultante. Era aquela a oportunidade com que sempre sonhara. Pai de cinco filhos, aos 31 anos, vendendo saúde, como costumava dizer, não havia por que não discutir a proposta. Dr. Marcondes era um conterrâneo, embora tivesse sido criado na capital, onde se formara em Engenharia. Casara-se com uma moça de classe média alta da cidade e tinha dois filhos. Chico Deca estudou a sugestão da irmã com Dona Meire e resolveram que, não tendo nada a perder, não haveria mal algum em visitar o doutor e discutir a proposta.
Dias depois, Santana visita o irmão pela última vez com o intuito de saber de sua decisão.
— Muito bem, Santana — falou firme Chico Deca, sentado na soleira da porta de sua humilde casa. — Você sabe que sou um homem sem estudos. Mal sei ler e escrever. Mas acho que o trabalho não me exige muita coisa além dos meus braços. Mas já vou logo dizendo: se esse cara vier com conversa de querer que meus filhos, ainda crianças, trabalhem para ele de sol a sol, não vai dar certo. Aqui comigo eles ajudam apenas em trabalhos mais leves e, ainda assim, no tempo em que não atrapalhe os estudos. Se essa questão for resolvida a contento, creio que poderemos chegar a um acordo.
— Então está acertado — fala Santana, contente. — Viajaremos em dois dias. Lá, acerto o encontro, e vocês decidem os detalhes, então, se achar conveniente, aceite, caso contrário não se perde nada em conversar.
***
Chico Deca partiu esperançoso, rumo à capital. Na verdade, não sabia sequer onde ficava a tal cidade de Pacajus. O encontro fora marcado num domingo, e Dr. Marcondes compareceu à casa de Vieira (Dedé), grande amigo de Chico Deca desde a infância, quando seu pai, o Seu Deca, fora morador da fazenda de Seu Tonico. Era o Dr. Marcondes sobrinho legítimo de Seu Tonico e adorava Dona Alzira, sua tia. Esta, por sua vez, bajulava o sobrinho, pois o tinha em grande estima. Ela recomendou muito bem Chico Deca — era como todos os seus conterrâneos o conheciam — para a função de caseiro do sítio do sobrinho. Conversaram por horas e decidiram que seria melhor que Chico Deca fosse ver o sítio pessoalmente.

***
Os dois homens entraram no sítio num dia ensolarado do mês de maio daquele ano. Chico Deca ficou impressionado com o zelo que aquele homem tinha pelo sítio: coqueiros plantados em fila milimetricamente alinhados, três poços d’água revestidos com anéis de concreto, com tampa, inúmeras mangueiras, goiabeiras e muitos cajueiros, árvore frutífera típica da região, entre outros detalhes. Uma suave brisa soprava do leste, de forma quase constante, dando àquele magnífico cenário um aspecto de rara beleza, capaz de proporcionar bem-estar a todos que nele entrassem. Na entrada, um pesado portão de madeira. O restante, cercado em arame farpado com estacas de concreto pintadas de branco, bem alinhadas e rigorosamente distribuídas à mesma distância uma da outra, o que dava um aspecto pitoresco à entrada do sítio. Uma estrada aberta na areia fina conduzia o veículo sítio adentro rumo à casa grande, uma magnífica e bem estruturada casa de luxo. Quebrando a harmonia daquela graciosa propriedade, um chalé velho e decadente era a morada do caseiro, num contraste pouco perceptível à maioria das pessoas. Árvores frondosas, mangueiras, cajueiros, goiabeiras e um enorme trecho de mata virgem que ocupava nada menos que 75% do terreno. Chico Deca ficou impressionado com tudo aquilo e imaginou a diferença entre o que seus olhos deslumbravam e a terra seca da roça em que sempre vivera, onde somente no inverno se via algo verde. Pensou nos seus filhos correndo debaixo daquelas mangueiras brincando contentes, comendo todas aquelas frutas. Um sorriso estampou-se em seu rosto. Nada lhe dava mais prazer do que ver seus filhos a brincar, atividade simples que as crianças do sertão não podiam usufruir. Sempre sonhara em dar-lhes uma vida melhor. Talvez estivesse ali a tão sonhada oportunidade.
Enquanto o carro avançava rumo à casa principal, o Dr. Marcondes ia explicando o que via e o que esperava do novo caseiro, caso fechassem negócio.
— Vê, Chico, aquelas fileiras de coqueiros? — indagava orgulhoso o doutor. — Plantei-os depois que comprei o sítio e faço questão que sejam regadas diariamente no verão . Uma a uma.
— É justo — respondeu Chico Deca. — Mas, como se faz isso?
— Temos um chafariz na casa principal e mais três poços nesta parte do terreno. Não ficam a mais de 150m um do outro, assim você sempre terá água por perto para regá-los. Há, na despensa da casa do caseiro, alguns carros de mão e latões de zinco para facilitar o transporte da água. Se quiser, nisso, seus filhos podem ajudá-lo.
— Doutor, é exatamente esse o ponto. Meus filhos não trabalham nem para mim. Não têm idade para isso. Precisam mesmo é de estudar. Os mais velhos contam dez e nove anos. Não acredito que o trabalho de crianças dessa idade vá fazer alguma diferença — fala firme Chico Deca para que o doutor já soubesse a que vinha.
— Pois bem, faça como achar melhor. O que importa mesmo é que dê conta do serviço.
Tentando esconder a contrariedade, o doutor prossegue.
— Dos cajueiros... — continuou ele — a mim, só interessam as castanhas. Você deve mantê-los limpos debaixo das copas apenas, o resto não interessa. Na safra do caju, diariamente você deve recolher as castanhas, arrancando-as uma a uma dos frutos. Temos sacolas de palha para o serviço. Feito isso, você as trará para a sua casa, onde temos um local para pô-las para secar ao sol. Depois as recolhe para um pequeno depósito. Já os frutos, há caminhões das fábricas de doces na região que passam na estrada, comprando-os em caixas de 20kg, é muito barato, mas, se você quiser, pode pedir pros seus filhos venderem, assim ganham alguma coisa.
Chico Deca não respondeu, mas não gostou da insistência dele em que seus filhos trabalhassem, afinal cogitava a possibilidade de sair do sertão, exatamente para que eles pudessem estudar, ao invés de trabalharem antes da idade ideal.
O carro parou em frente à luxuosa casa de campo do Dr. Marcondes. Orgulhoso, o doutor lhe mostra todas as dependências, pedindo para que, quando ele viesse com a família descansar nos fins de semana, Dona Meire fizesse uma faxina geral no dia anterior e recolhesse as folhas que teimavam em acumular nos terreiros ao redor da casa. Na lateral esquerda da casa, há poucos metros, um cata-vento funcionava como bomba para puxar água do poço, sobre o qual estava armada a estrutura de aço que mantinha o moinho suspenso há mais de 20 metros de altura. Um tanque recebia a água que sobrava ao ser bombeada para a caixa d’água da casa principal. Como não havia como suspender a quantidade bombeada, transbordava, criando lodo sobre suas paredes e calçada, indo desembocar no córrego logo abaixo onde começava a plantação de capim para o gado. Era um tanque enorme, coberto por uma estrutura de telhas pequenas. O doutor o usava como piscina para seus filhos e convidados. Na frente da casa, a cerca de 50 metros, uma enorme plantação de capim para o gado estava em andamento, cobrindo o curso do pequeno córrego. Recomendou que desse prioridade à sua conclusão. Para fazê-lo, bastaria canalizar a água do chafariz, movido pelo moinho do catavento, para que a plantação fosse regada a contento.
— E os formigueiros? — pergunta Chico Deca, impressionado com as montanhas de terra vermelha que as formigas traziam das profundezas, já que a camada superficial era composta de espessa camada de areia fina e branca como neve.
— Veneno nelas! — responde o doutor, sorrindo. — Temos bombas e veneno à vontade. Na verdade, ninguém consegue dar cabo delas em definitivo, mas pelo menos devemos combatê-las, senão elas se apossarão do meu sítio.
— Entendi — comenta Chico Deca. — Mais alguma coisa que seja da minha alçada?
— Sim — fala o doutor, convidando-o afastar-se da casa entrando num mato próximo, onde uma cerca de arame, montada com estacas de sabiá, separava a parte cultivada do terreno da parte selvagem. — Dessa cerca até o final do terreno, é mata. As duas vacas podem ser soltas para comer à vontade, e você pode recolhê-las à noitinha para o curral ou, se preferir, as mantenha por lá, tendo o cuidado de abastecê-las com água diariamente. Tem um tanque para essa finalidade ao lado da cerca. O leite é seu, use-o como melhor lhe convier. Pode dá-lo às crianças, vendê-lo, o que achar melhor. Na casa do caseiro, tem um enorme carneiro, é um bicho de estimação, meio brincalhão, mas é presente de um amigo. Ele me deu para fazermos um churrasco aqui, mas gostei tanto do bicho que não tenho coragem de matá-lo. Assim, gostaria que cuidasse bem dele. Mas não o mantenha amarrado. De resto, você tem carta branca.
— Entendi.
— E então? — pergunta o doutor, ansioso. — Temos um acordo? Podemos assinar logo sua carteira para que você meta a mão na massa?
— Na verdade, preciso falar com Meire, minha esposa. Nada faço sem que ela aprove, afinal somos sócios há muito tempo — responde Chico Deca, bem humorado.
Dr. Marcondes ri descontraído com a colocação. Em seguida, comenta no mesmo tom:
— Como eu e a Dona Celeste! — soltando uma gargalhada espalhafatosa.
A visita ao sítio havia sido proveitosa. Chico Deca gostara muito do ambiente, mas nem tanto do tratamento do Dr. Marcondes. Parecia que aquele homem se esforçava para ser gentil, contrariando algo parecido com arrogância dissimulada. Achou melhor não comentar com Santana e Dedé, ou mesmo com Dona Alzira, para não ferir seus sentimentos em relação ao amado sobrinho.
No dia seguinte, em conversa descontraída em casa de Dona Alzira, o doutor expunha de forma exagerada as impressões que tivera do candidato a caseiro. Não poupou elogios a Chico Deca. Este tudo ouvia um tanto desconfiado. No íntimo, achava tudo aquilo bom demais para ser verdade. Sempre ganhara a vida com dificuldade. Nada jamais lhe havia sido dado de bandeja, e aquela situação lhe parecera desconfortável desde o início. Se o acordo era mesmo tão bom, por que o caseiro que estava atualmente no sítio lhe pareceu tão insatisfeito?
Depois da conversa, Santana, empolgada, confidencia-lhe:
— Meu irmão, não seja tolo, homem! Vai perder uma chance dessas?
— Não se decida baseado na pressão ou coação de terceiros, meu amigo. Faça somente o que achar conveniente — complementa Dedé com sensatez. — Afinal, o que está em jogo é o bem-estar de sua família, e o acordo só a você interessa. Se achar que isso lhes oferecerá um futuro melhor, aceite. Senão, rejeite. Marcondes arranjará outra pessoa.
Aquilo deixou Chico Deca muito confuso. Parecia que Dedé sabia de algo que preferia não comentar. Depois Dona Alzira o abordou, convencendo-lhe de que a oportunidade não deveria ser desperdiçada.
Enfim, fecharam o acordo, e ficou acertado que Dr. Marcondes lhe pagaria um salário mínimo mais abonos legais para os cinco filhos, mais os benefícios que já haviam acertado quanto aos produtos da pequena fazenda, como leite, frutas etc.
Chico Deca voltara jubiloso para casa. Empolgada com a ideia, Dona Meire aprovou o acordo sem titubear. Venderam alguns animais domésticos que possuíam e parte de alguns produtos agrícolas que tinham de sobra, fruto da ótima colheita daquele ano. Precavido, não vendeu a modesta casa onde moravam e negociou com os cunhados a colheita de algodão de suas roças.
As crianças, principalmente os dois mais velhos, Nilton e Nando, não conseguiam conter a alegria. Afinal, para eles, era a primeira vez que sairiam para morar longe, com exceção da vez em que a família fora retirante da seca de 1970, quando tinham dois e um ano de idade respectivamente. Daquela vez, era diferente. Iriam saborear a viagem de trem, conhecer a capital, uma nova cidade etc. Falavam para todos os primos e amigos da nova aventura que os esperava.
***
Era fim do mês de maio quando a família, contando sete membros, aportou na estação central de Fortaleza. Deslumbradas, as crianças olhavam tudo com curiosidade, em especial os prédios altos e os aviões cruzando o céu. Antes dessas duas coisas, apenas uma as impressionariam ao extremo e ansiavam por vê-la o quanto antes: o mar. Chico Deca narrara, maravilhado, a grandeza do mar, o barulho das ondas quebrando na areia, a maravilha das águas azuis a se perderem de vista, até levara um galão de 5 litros para sua terra natal, como prova de que havia mesmo visto o mar e caminhado na areia da praia, molhando os pés em suas águas. Tal visão deixara todos extasiados em sua terra natal, e as crianças mal podiam esperar para experimentar aquela sensação descrita pelo pai.
Um dia apenas na capital, em casa de Dona Alzira, Dedé e Santana, e seguiram viagem, então, rumo a Pacajus, sem que as crianças pudessem realizar o grande sonho.
***
Chico Deca e família se adaptaram rápido à nova vida. Até o segundo mês, tudo correra bem, exceto pelo episódio do carneiro de estimação do Dr. Marcondes. As crianças não podiam pisar fora de casa sem que ele as derrubasse com uma trombada. Volta e meia, Dona Meire saía para pegar água ou estender roupa, então lá vinha ele e a derrubava. Irritado, Chico Deca estava determinado a reclamar ao doutor em sua próxima visita ao sítio, embora Dona Meire o desaconselhasse a fazê-lo. Entendia, ela, que as coisas iam muito bem, e o doutor tinha muita estima pelo animal, poderia causar uma desavença desnecessária, embora suas pernas de pele alva estivessem sempre roxas por causa das “amarradas” que o animal lhe dava com frequência.
***
— Doutor...? Teria um minuto? — abordou-o Chico Deca em tom grave, logo que o doutor parou sua Brasília amarela, do ano, em frente à casa do caseiro naquela manhã do mês de agosto.
— Pois não, Chico... — fala o doutor, percebendo algo desconfortável na expressão do caseiro. — Algum problema?
— Sim, e dos grandes! — responde Chico Deca sem rodeios.
— Não me deixe aflito, homem! Fale logo!
— Seu querido carneiro! Se o senhor não o levar daqui, eu mesmo o matarei.
— Por quê? O que houve afinal? — pergunta o doutor, ainda alheio aos fatos.
— Ele derruba qualquer um que passar em sua frente. As crianças estão presas em casa, e Meire já foi derrubada inúmeras vezes. De forma que já o amarrei, contrariando suas ordens, e espero que o senhor o leve daqui ou faça com ele o que foi determinado: um churrasco. Desde o início, isso vem acontecendo, e só não falei antes por insistência de minha esposa, mas agora não dá mais para continuar.
Dr. Marcondes não gostou nada do que ouviu. Não comentou a observação do caseiro. Afastou-se em silêncio e tratou de resolver outros assuntos, rumando sozinho à casa principal. Após algumas horas, volta de carro pela estrada de areia que cruzava o sítio. Sem descer, chama o caseiro que roçava a sombra de um cajueiro próximo, assoviando uma música bastante popular que estourara nas paradas.
— Chico! — gritou o doutor. — Venha até aqui, por favor.
— Pois não doutor... — responde o caseiro, aproximando-se rápido com a roçadeira na mão.
— Me dê pelo menos duas semanas. Convidarei uns amigos para o churrasco. Mas, você mata o bicho, eu nem quero estar por perto para ver — sentenciou o doutor.
— Feito! — respondeu Chico Deca sem demonstrar qualquer emoção.
O evento do churrasco foi uma festa com mais de cem convidados. Chico Deca e a família se desdobraram para dar conta de tanto serviço, mas tudo ocorreu dentro da previsão. Dr. Marcondes, satisfeito com os elogios que recebera dos amigos, parabenizou o caseiro e sua família pelo excelente trabalho.
***
Quase dois meses haviam-se passado desde o churrasco. Há dias, Chico Deca começara a queixar-se de dores frequentes no abdômen, no lado direito do umbigo, acompanhadas de extrema dificuldade para urinar. Foi ao médico, o qual diagnosticou uma infecção urinária e uma pequena complicação nos rins. Tomou vários remédios, mas nenhum deles resolveu o problema. A urina tinha cor de sangue. Nando e Nilton identificavam seu rastro pelo sítio, quando viam gotas de algo vermelho pintando a areia branca.
— Papai passou por aqui — comentava Nilton.
— O que será que ele tem? — perguntava Nando ingenuamente. — Papai não parece bem. Não brinca mais com a gente como antes. Tem expressão de dor estampada no rosto. E essa urina vermelha dele não é um bom sinal.
— É verdade. O que será que ele tem? Será que urina sangue?
— Acho que não. Deve ser por conta dos remédios que está tomando desde que foi ao médico na semana passada — conclui Nando.
As crianças não tinham maturidade para compreender muitas coisas que dizem respeito ao cotidiano dos adultos e, como é natural, esqueciam rápido, dando asas às suas fantasias.
O tempo passava, e Chico Deca estava cada vez mais incomodado com as dores. A produção no sítio começou a diminuir. Explicava sempre ao Dr. Marcondes que estava tratando uma infecção urinária, mas, assim que voltasse ao normal, recuperaria o tempo perdido e poria todo o serviço em dia. Enquanto isso, os meninos fariam o que pudessem para regar os coqueiros e recolherem as castanhas, para que o serviço não parasse por completo. O doutor entendeu e falou para não se preocupar.
— Cuide da sua saúde, rapaz, o resto é o resto — falou o doutor logo que posto a par da situação.
Contudo, passadas algumas semanas sem melhoras visíveis, e o serviço amontoando-se pelo sítio, o doutor, contrariado, aborda-o após pouco mais de um mês desde que adoecera:
— Chico Deca, preciso lhe falar uma coisa — falou em tom grave o doutor sentado em sua varanda na casa principal. — Você muito me decepcionou. Quando tia Alzira o recomendou, pensei que fosse mesmo um homem trabalhador, mas agora percebo que você é um preguiçoso, que se escora atrás de duas crianças para não trabalhar.
O doutor falou com naturalidade, dono de si. Não tinha a menor dúvida do que afirmava, assim, esperou uma resposta à altura, talvez até uma atitude hostil por parte do caseiro, embora fosse ele mesmo um homem de massa corporal quase duas vezes maior. Diante de tamanho insulto, era provável que o caseiro se descontrolasse e partisse para uma agressão física, mas o que estava dito não podia ser desdito.
— Lamento pelo que está acontecendo, doutor — respondeu Chico Deca com olhar abatido.
O caseiro havia perdido muito peso no último mês e guardava uma aparência cadavérica. Sua pele morena era agora de aparência clara, amarelada.
— Sei que não estou correspondendo às suas expectativas, e não posso mesmo trabalhar em ritmo normal. Minha situação não melhora apesar das visitas ao médico todas as semanas. Assim, deixo em suas mãos a decisão a respeito do nosso contrato. Se não estou produzindo como deveria, é justo que me dispense.
Chico Deca falava com a humildade característica do homem do campo que jamais lesaria alguém de propósito.
— Não é essa a questão — insiste o doutor visivelmente contrariado. — Na verdade, você não está doente, está apenas fazendo corpo mole para não fazer o serviço que combinamos. Admita, homem... Você está com preguiça!
Profundamente ofendido, Chico Deca, homem acostumado às duras labutas do sertão, para quem o serviço que fazia naquele sítio era uma diversão, não havia mais a menor possibilidade de continuar trabalhando para o Dr. Marcondes. Por alguns segundos, Chico Deca viu todos os seus sonhos caírem por terra. Todos os seus planos para o futuro pareciam agora apagar de sua mente. Não ignorava o fato de que sua vida havia mudado para melhor nos últimos meses, mas não era homem de engolir desaforo sob pretexto algum. Pouco mais de seis meses haviam se passado desde que chegara ao sítio, dois deles submetido a tratamento daquela misteriosa doença que lhe impedia de trabalhar, urinar, comer e dormir. Noites a fio, levantava-se a cada meia hora para tentar urinar, mas não expelia além de algumas gotas, que não chegava a aliviar o desconforto imenso que sentia. Agora, aquele homem o acusava de preguiçoso, o que para ele era algo inadmissível.
— Olha aqui, doutor! — falou Chico Deca, tentando controlar os nervos. — Nenhum homem é maior do que outro apenas pelo fato de ter mais dinheiro. Afirmo que estou doente e posso provar. Basta que olhe os exames e receitas médicas. Mas o Senhor já tem sua opinião formada, o que lhe deve bastar. Contudo, afirmo agora que, nem mesmo se voltasse atrás no que disse, eu reconsideraria, pela grande ofensa que me infligiu. Sugiro que me demita agora e façamos de conta que essa conversa nunca aconteceu.
Dito isso, Chico Deca rodou sobre os calcanhares, dando as costas para o doutor que, contrariado, entrou no seu carro após alguns minutos e, pensativo, acelerou rumo ao portão de saída do sítio, sem sequer exigir a companhia de uma das crianças para abri-lo, como de costume. Uma semana depois, mandou o filho mais velho, acompanhado de um motorista, com a papelada da rescisão do contrato. Dona Alzira, contrariada com as queixas do sobrinho, fez a cabeça de Santana para mostrar a Chico Deca que este estava equivocado. “O doutor apenas o chamara à atenção por algo que lhe era de direito”, afirmava Santana, em nome da matrona, em uma visita às vésperas da saída de Chico Deca e família do sítio do Dr. Marcondes.
— Escute aqui, Santana — falou Chico Deca em tom grave. — Posso ser tudo nessa vida, menos preguiçoso. Tenho amor próprio. E vou lhe dizer uma coisa: nem que ele me implorasse para ficar, eu iria ouvi-lo. Sei que posso estar perdendo um futuro promissor por conta do meu orgulho, mas não admito que ninguém, jamais, em tempo e em lugar algum, questione minha honestidade. Chamar-me de preguiçoso equivale a me chamar de ladrão. Foi isso que aprendi com nosso pai, e minha palavra é definitiva. Vamos embora daqui e jamais voltaremos, nem com o melhor dos acordos. E digo mais: queria muito ter todo o dinheiro que ele me pagou até hoje só para devolvê-lo, não importando o que a lei determina. Não aceitaria um centavo sequer das mãos dele se não fosse pelos meus filhos.
De fato, o doutor jamais lhe pediria desculpas.
Saindo do sítio do Dr. Marcondes, em Pacajus, Chico Deca e a família alugaram uma casa a poucos metros da casa de seu amigo Dedé, em Fortaleza, e Dona Meire passou a fazer costuras em sua velha máquina a pedal na tentativa de conseguir manter o sustento da casa. Chico Deca não dava sinais de melhora. Queixava-se de fortes dores no abdômen, as quais se agravaram nos últimos dias ao alternarem-se com uma misteriosa dor na perna direita, que o impedia de andar. Passadas duas semanas, uma crise forte no meio da noite o levou às pressas ao hospital. O médico plantonista diagnosticou “apendicite aguda”. Seu apêndice inflamara-se até o limite, estourando. Levaram-no rápido para a sala de cirurgia. No dia seguinte, estava aliviado de todas as dores e recuperava-se dentro da previsão médica. Receberia alta em dois dias. Mas, na tarde daquele mesmo dia, uma onda de gripe contaminara todo o terceiro andar, local onde se encontrava. Num acesso de espirros sucessivos, a sutura da cirurgia rompeu-se, e suas vísceras ficaram expostas. A artéria femoral foi rompida, e o sangue jorrava intensamente. A equipe médica foi informada, e Chico Deca, levado às pressas de volta à sala de cirurgia. Entre a vida e a morte, aplicaram-lhe outra anestesia geral e realizaram uma transfusão de sangue, inserindo-lhe doze bolsas do precioso líquido em uma intervenção cirúrgica que durou quase seis horas.
***
O chefe da equipe de plantão no centro cirúrgico era Dr. Ronaldo, um jovem cirurgião de apenas 25 anos. Após longas horas tentando conter a hemorragia, finalmente conseguiu pegar a artéria, mas, logo que a suturou, veio a parada cardíaca. Decepcionada, a equipe começava a remover os aparelhos quando Dr. Ronaldo, retirando as luvas cirúrgicas, para e, como inspirado por força invisível, fala de surpresa:
— Esperem! — fala às pressas com autoridade, fazendo todos pararem.
— Sim, doutor... — fala Clarice, a enfermeira chefe, uma das melhores daquele complexo hospitalar.
— Homem negro, 31 anos, sem histórico de qualquer complicação cardíaca. Não podemos desistir dele. Peguem o desfibrilador! Vamos tentar mais uma vez.
Regularam o aparelho em 300 Joules, e o cirurgião o descarregou no peito de Chico Deca. Nenhum resultado.
— Aumentem para 360 ! — ordenou o médico. — Afastem-se!
Mais uma vez, o médico descarregou o aparelho no peito do paciente. O corpo quase levanta da maca, tamanha a contração dos músculos recebendo aquela estupenda descarga elétrica.
— Vamos... Reage, homem! Você pode! Não desista... Afastem-se!
E mais uma vez Dr. Ronaldo descarregou o aparelho no peito do paciente. Uma luz acendeu, piscando no painel ao lado. O coração voltara a bater. Dr. Ronaldo, entusiasmado, convoca a equipe a continuar o trabalho.
— Ele voltou! Ele voltou! Não falei? Ele aguenta! — comemora o jovem cirurgião, empolgado com o resultado.
A equipe volta a ligar todos os aparelhos, e a cirurgia continua, agora faltando apenas a higienização interna e sutura da incisão em duas fases: a interna, com pontos de aço cirúrgico, num total de cinco, devido à enorme abertura; e a externa, com pontos convencionais. A cicatriz era enorme após a conclusão. O paciente ficaria ainda 48 horas na UTI, em rigorosa observação.
Após dois dias, Chico Deca foi liberado para a enfermaria, onde os colegas o aguardavam ansiosos.
— Cara... — comenta um caminhoneiro maranhense recém-operado de varizes nas duas pernas —, você nasceu de novo. Pelo que soubemos, você teve uma parada cardíaca, perdeu todo o sangue do corpo, mas fizeram transfusão e alguns pontos de aço, e está aqui “vivinho da silva”! Parabéns, cara!
Todos na enfermaria riram com o comentário entusiasmado do colega.
— Você é durão. O nosso amigo Célio não resistiu. Uma complicação no pós-operatório. Disseram que foi uma infecção hospitalar. Está com Deus. Agora somos só nós três. — Comenta Raul, outro paciente que aguardava a hora de se submeter a uma complicada cirurgia para a retirada do pulmão esquerdo.
— Obrigado, pessoal! — agradece Isidro, nome de batismo pelo qual o chamavam por lá.
Os dias passavam devagar. O período de recuperação foi terrível. Abdômen inchado, drenos por toda parte, série de exercícios pulmonares e muita dor sempre que o enfermeiro Augusto entrava na enfermaria. Cabia a ele, uma vez por dia, comprimir com toda a força de suas robustas mãos o abdômen de Chico Deca para expelir os líquidos que se acumulavam em seu interior. Era impossível não gemer com aquela sessão de tortura. Mas ele suportava. Nessas horas, desviava o pensamento e pensava nos filhos e em sua amada Meire. Sabia que, em poucas horas, receberia a visita dela, ali mesmo na enfermaria, e poderia ver um dos meninos que a acompanhava pela janela do quarto andar. Com dificuldade, deslocava-se até a janela e acenava para um dos filhos, que se revezavam para acompanhar a mãe, a qual enjoava sempre ao andar de ônibus. Aquele sufoco duraria 45 dias, período no qual Nando e Nilton trabalharam como ajudantes num mercadinho de frutas perto de casa, e Dona Meire, ansiosa para vê-lo recuperado, desdobrara-se para dar contas de pilhas de confecções em que fazia acabamento para uma empresa, que lhe pagava alguns centavos por peça. O serviço exigia 15 horas de trabalho diário, o que lhe rendia menos de um salário mínimo por mês. Apesar do esforço, o que arrecadavam, não dava para pagar as despesas e comprar alimentos. Era inevitável. Teriam que voltar para a roça outra vez e encarar a dureza do sertão por tempo indeterminado.
De volta para casa, abatido, Chico Deca fazia, ele próprio, a troca dos curativos na enorme cicatriz. Desinfetava, aplicando iodo e água oxigenada. Em seguida, aplicava uma pomada cicatrizante de cor amarelada e cobria tudo com algodão e gaze. Era comovente ver aquele pai de família naquela situação. Cinco filhos vivendo na extrema miséria, sua esposa se virando como podia para ganhar a vida na velha máquina de costura, e, ainda assim, ter de encarar a dura realidade de que nada que fizessem seria bastante para mantê-los na capital até sua completa recuperação. Tinham que voltar. Era fato.
Dr. Marcondes, ao receber as notícias de que seu ex-caseiro sofrera a intervenção cirúrgica e encarado, face a face, a morte, ficou muito confuso. Um misto de arrependimento e pesar o dominaram. Mas como desfazer o que havia feito? As palavras duras que havia dito? Ligou para a tia e tentou justificar-se com ela. Dona Alzira comentou comovida:
— É, meu filho, nunca se sabe as consequências daquilo que falamos ou fazemos. O fato é que ele falava a verdade. Você não lhe deu crédito, muito menos eu, e agora os fatos se impõem. Mas uma coisa é certa: duvido que ele reconsidere o que você fez.
— Ah, minha tia, gostaria muito que ele reconsiderasse e aceitasse voltar ao sítio. A vaga ainda está em aberto.
— Quer um conselho, meu filho? — indaga Dona Alzira, convicta. — Esqueça esse episódio. Só o tempo será capaz de apagar, se é que pode, determinadas ações. Aceite o fato de que nada pode fazer agora. Conheço aquele rapaz desde criança. Sempre foi trabalhador e honesto. Conduta impecável. Dedica-se de corpo e alma a criar os filhos e dar-lhes o melhor, mesmo não tendo sequer o ensino primário. Não obstante esse fato, ele jamais aceitaria sua proposta, mesmo que tenha de amargar longos anos no sertão. Creia... Você nada pode fazer.
De fato Dr. Marcondes manifestara-se arrependido para a tia, mas jamais visitou Chico Deca durante os poucos dias em que este e sua família permaneceram na capital, após sair do hospital. Um primo dele, antigo conhecido de Chico Deca, apareceu uma vez antes da partida para sua terra natal, com uma generosa doação de alimentos e dinheiro. Claro que não era o suficiente para mantê-lo na capital, mas ainda assim, uma valiosa ajuda naquelas horas difíceis. Até hoje, questiona-se aquela atitude de um homem que perdera contato por longos anos, aparecendo exatamente naquela semana em que Dr. Marcondes conversara com a tia, pesaroso e constrangido ao extremo.
***
Era fim do mês de fevereiro de 1979 quando Chico Deca, pálido e esquelético, desceu com a família na estação ferroviária de Aurora, sua terra natal. A incerteza pairava em seus pensamentos, pois, na roça, o trabalho de preparação da terra começa sempre no ano anterior, com o desmatamento da área a ser plantada e o corte do solo das vazantes para o cultivo de arroz. Como estava no serviço de caseiro no ano anterior, nada lhe restava a fazer durante aquele ano a não ser tentar sobreviver de outra forma, em outra atividade. À exceção de uma pequena casa de dois cômodos erguida vizinha à casa de seus sogros e alguns móveis que um amigo se oferecera para transportar em um caminhão da empresa onde trabalhava, nada mais lhe restava. Pela primeira vez em sua vida, Chico Deca enfrentou a desolação. Não obstante a fé que Deus lhe mostraria um caminho, não via uma maneira de alimentar sua família naquele estado de saúde. Caminhava como impulsionado pelo vento, tamanha fraqueza física em que se encontrava. Os amigos o felicitavam pela dádiva de estar vivo, mas, além de estímulos e apoio moral, quase ninguém dispunha de algo mais a oferecer.
De volta à sua modesta casa no Sítio Caiçara, um pequeno povoado fora da cidade, terra onde nasceram todos os seus familiares, sentiu-se em casa novamente. Um ar de familiaridade lhe dava a segurança para enfrentar a adversidade que o futuro lhe reservava a partir daquele instante.
Dona Meire, embora tivesse a preocupação constante com o sustento da família, jamais lhe cobrou qualquer atitude quanto à manutenção da casa. Aquela fantástica mulher “arregaçou as mangas” — como dizem os sertanejos — e batalhou, com ajuda dos dois filhos mais velhos. Com alguns trocados que recebera de doação do “ilustre desconhecido” em Fortaleza, Dona Meire comprou alguns tecidos e saiu a vendê-los pela vizinhança, trocando-os em galinhas, ovos, bacurins , cabritos, o que lhe oferecessem. Levava a vantagem de não só vendê-los, mas, exímia costureira, era quem confeccionava as roupas de seus clientes. O negócio rendia o suficiente para manter as despesas de casa. Comovido e sem poder sequer se deslocar nos terrenos acidentados da região para ajudá-la, Chico Deca comenta, comovido, certo dia:
— Ah, minha amada Meire, o que seria de mim sem você?! Como lamento minha estupidez em não reconsiderar a possibilidade de voltar a Pacajus!
— Você fez o que seu coração mandou, meu nego. Vamos superar isso. É apenas uma fase ruim. Nenhuma crise dura para sempre. Lembre-se da seca de 1970, quando daqui partimos e perdemos nossa única filha. Pensamos que jamais teríamos alento, lembra? E eis que Deus nos mandou outros filhos, a quem nos dedicamos agora de corpo e alma. Deus tem um grande projeto para nós, e não podemos esmorecer agora. Seu estado de saúde é apenas parte da prova, outras virão, e nossas dores de agora nos servirão de exercício para o futuro. Um dia, haveremos de vencer e recordar desses dias, talvez até rindo das situações que enfrentamos agora.
— Tem razão — concordou Chico Deca, revigorado com a injeção de ânimo. — Nada tão ruim como as coisas que enfrentamos antes. Deus, em sua sabedoria, há de me mandar uma solução.
E mandaria. Mas, antes, mandou um estranho mensageiro.
***
Era uma manhã nublada de inverno. Dona Meire saíra acompanhada de Nilton e Nando para fazer sua rota de venda. Em casa, Chico Deca cuidava dos três pequenos, distraindo-se com as brincadeiras infantis quando um homem bateu à sua porta. Chico Deca, curvado para frente para sofrer menos o repuxo dos pontos de aço no abdômen, vai até a porta para atender o forasteiro.
— Bom dia! — fala o homem humildemente. — Meu nome é Assis, fui recentemente operado de úlcera no estômago. Tenho 5 filhos e, como não posso trabalhar no momento, estou pedindo ajuda a qualquer filho de Deus que, de bom coração, possa se compadecer da minha situação e me socorrer.
Chico Deca não pôde deixar de solidarizar-se com aquele estranho. Afinal, sua situação não era diferente, e também tinha cinco filhos. Coincidência ou não, eram ambos parceiros de infortúnios naquele momento. Imaginando as humilhações que aquele estranho teria enfrentado, emocionou-se e, convidando-o a entrar, ouviu em silêncio a comovente história do forasteiro.
O homem aparentava ter uns 30 anos, magro, barba por fazer, olhos fundos com olheiras visíveis. Falava manso e arrastado. Chico Deca entendeu aquele apelo e ofereceu algo para comer. O homem devorou um prato de cuscuz com um ralo café em poucos minutos. Chico Deca, como todos os seres humanos, era dotado de qualidades e defeitos, mas uma virtude sempre lhe realçara a conduta: a generosidade. Para ele, valia o lema do sertão que dizia: “onde comem dois, comem três”. E, com a alma lavada ao ouvir a história de vida daquele homem, sentiu-se forte. Não pôde deixar de sentir uma pontinha de vergonha por reclamar, às vezes, da própria sorte. Tinha uma esposa maravilhosa, filhos saudáveis, uma casa para morar, e comida não faltava. Aquele homem perdera a esposa num acidente de trem, tinha cinco filhos na miséria, sendo dois deles paralíticos. Sofria os efeitos de uma intervenção cirúrgica que, por pouco, não lhe tirou a vida e, ainda assim, encarava o mundo de peito aberto, sem reclamar, diante das constantes bofetadas que a vida lhe dava.
Em poucos minutos, sentado na modesta sala, o homem deixara Chico Deca a par de toda a sua vida, fazendo questão de exibir o abdômen envolto em grossa camada de gazes, pelas quais algo em tom vermelho fazia-se visível. Comovido, o anfitrião lhe oferece o melhor do pouco que tem. Vai à despensa e recolhe metade dos alimentos que tem disponível e põe tudo num saco. O homem agradece com lágrimas nos olhos. Encarando-o, o homem ficou sem palavras diante daquela atitude. Não era sempre que alguém em idêntica situação agia com tamanha generosidade. Quase sem poder andar, o homem dá alguns passos com o enorme saco nos ombros, fazendo caretas de dor. Comovido, Chico Deca se oferece para ajudá-lo, afinal aquele forasteiro vivia situação pior que a sua. Pediu à sua sogra, que morava numa enorme casa de tijolos sem reboco há alguns metros, para que cuidasse das crianças enquanto se ausentaria por algumas horas. Acabou carregando o pesado saco repleto de mantimentos por mais de quatro quilômetros, até a estação ferroviária da cidade, onde o homem, agradecido, despediu-se, pegando o trem rumo a Juazeiro do Norte. Aquele esforço, o levaria a prostrar-se por quase um mês, abrindo uma pequena ruptura no tecido ainda não cicatrizado da cirurgia, o que a nomenclatura médica chama de “hérnia incisional”. Aquela hérnia iria evoluir indefinidamente, crescendo e lhe causando desconforto pelo resto da sua vida.
***
Alguns meses se passaram até que um parente distante aparece na cidade, vindo de Feira de Santana, na Bahia. Junto com o irmão, pretendiam abrir um negócio na cidade, no ramo de vendas. Os produtos eram artigos religiosos, sendo mais procurados os quadros de santos com moldura trabalhada, haja vista a fé do sertanejo em várias divindades católicas e da umbanda.
Chico Deca viu, naquele projeto, uma saída à sua crise momentânea. Ofereceu-se de imediato para o trabalhado de vendedor. Como estava recrutando talentos na arte da venda, o patrão aceitava qualquer um que se oferecesse para testá-lo por uma semana numa rota que o vendedor escolheria livremente. Chico Deca pegou seis quadros e dirigiu-se para a cidade de Missão Velha, onde antigos conhecidos lhe receberiam, oferecendo acolhida no dia em que tivesse a serviço na cidade. Esperto, Chico Deca pensou que, se não vendesse nada, não poderia se dar ao luxo de gastar com uma estada. Assim o fez. Vendeu os seis quadros até o meio-dia, em seguida, almoçou na casa dos amigos. Esperou o trem das 15h e 30min e voltou para casa, chegando contente no início da noite com a pequena comissão. Dois dias depois, repetiu a façanha, agora levando doze quadros. Vendeu todos, mas sua saúde voltou a piorar, devido ao enorme peso das peças que teve de carregar no ombro. Tal ação forçou a ruptura causada na barriga quando usou de demasiado esforço para socorrer o forasteiro meses antes. Dona Meire, preocupada, advertiu-o de que, embora necessitassem de dinheiro, sua vida era mais importante, dessa forma, deveria carregar apenas oito quadros, ainda assim, dividindo-os com um dos meninos que, a partir daquele momento, acompanhá-lo-iam sempre que possível, assim o trabalho não lhe causaria maiores danos. Ele concordou contrariado, pois seus companheiros de trabalho, dependendo da demanda, carregavam até 20 quadros em cada viagem. Contudo, o bom senso acabou falando mais alto.
Resolveram, então, alugar uma casinha pequena na cidade, para facilitar seu trajeto casa/trabalho. Não era muito perto da estação, mas, pelo menos, poupava-lhe da penosa viagem de quatro quilômetros a pé, em terreno acidentado até o sítio todos os dias.
Chico Deca viveu dias difíceis, deslocando-se pelas cidades próximas, em longas caminhadas, carregando um fardo pesado de não menos de 20kg. Muitas vezes, Nilton e Nando se revezavam em acompanhá-lo, a pedido de Dona Meire, que, aflita, não entendia como ele conseguia andar o dia inteiro carregando peso, naquele estado. O curativo que usava de forma permanente para cobrir a cicatriz e os pontos de aço cirúrgico que ficavam expostos, com frequência, apareciam manchados de sangue. Discreto, ele fazia a limpeza, trocava as gazes e dava fim ao material para que ninguém o visse. Dona Meire sabia que ele usava daquele expediente, mas nunca se revelou, muito menos o recriminou, por entender que ele o fazia para salvaguardar sua reputação. Não queria se sentir inútil, muito menos que os outros assim pensassem a seu respeito.
Simpático, gentil e bem humorado, oferecia-se sempre para mostrar os quadros mesmo a quem não demonstrava interesse em adquiri-los. Muitas vezes, a prosa desenrolava-se descontraída, e Chico Deca falava de sua vida. Comovidas, as pessoas compravam os quadros, muito mais para ajudá-lo do que mesmo por gostar das peças. Satisfeito, voltava no final do dia, de trem, com apenas uma ou duas peças das oito que conseguia carregar. Recebia a comissão do dono do crediário e dirigia-se para casa, tendo o cuidado de, antes, passar numa mercearia e comprar biscoitos para as crianças. Aquilo era um ritual sagrado. Não havia um único caso, até aquele momento, em que não repetisse aquela atitude. Vez por outra, disfarçava, escondendo os biscoitos em algum lugar, para curtir o suspense das crianças. Quando elas baixavam as cabeças, tristes e decepcionadas, eis que ele aparecia com o pacote de biscoitos na mão, fazendo os pequenos pularem de alegria. Pequenas coisas, como pães e biscoitos, eram para as crianças daquelas paragens um luxo só digno de filhos dos ricos. O dinheiro era sempre entregue nas mãos da esposa, que dava o devido destino, elegendo as prioridades. Tal conduta foi rechaçada mais de uma vez pelos machões da região, por entenderem que só homens dominados por suas mulheres assim agiam. Chico Deca jamais se importou com tais comentários, afirmando sempre que tinha casado com Meire, não com seus contraditores machões.
Alguns meses haviam-se passado. Certo dia, acompanhado de Nilton, aguardava o trem na estação de Missão Velha quando viu um homem caído próximo aos trilhos. Preocupado, comunicou ao chefe da estação para que providenciasse sua remoção em segurança. Atendendo à solicitação, o chefe, muito educado, vai até o local e, reconhecendo o homem, exclama sarcástico:
— Pedro xexeiro ! Tinha de ser ele... Meu Deus! Este desgraçado ainda vai acabar morrendo debaixo de um trem. Enche a cara e vem dormir à sombra, na plataforma da estação. Já o tirei daí inúmeras vezes. Um dia, alguém não o verá, e esse miserável terá o que merece. Tem muita gente por aqui que adoraria vê-lo morto.
Surpreso com a fala do chefe, Chico Deca se aproxima para ver o homem. Estava mal vestido, sujo, fedendo a vômito, barbudo. Seu estado era deplorável.
— Reconheço este homem... — falou Chico Deca, tentando se lembrar de onde o conhecia. — Não consigo lembrar. Mas ele não me é estranho.
— Ora, quem, em nome de Deus não conhece o maior enrolão desta cidade? Ele já me enrolou, enrolou o prefeito, o delegado e até o padre da cidade. Chegou novato por aqui, ele age imediatamente — falou o chefe numa gargalhada, lembrando do golpe em que ele próprio fora vítima há alguns anos. — Seu golpe mais manjado é o de se fazer passar por doente, tipo alguém que acabou de fazer uma cirurgia. Se bem que esse golpe não lhe rende mais nada por aqui. Mas, sempre que viaja a outras cidades da região, volta carregado de tudo o quanto é bugiganga. Creia, meu amigo, ele é um safado de mancheia.
Sem deixar que o chefe soubesse que também fora vítima daquele malfeitor, Chico Deca sentiu um misto de raiva e decepção. Como alguém podia abusar da boa fé das pessoas daquela maneira? Lamentou o dia em que comprometeu sua saúde para sempre, para ajudar aquele forasteiro que batia à sua porta. Sentou-se no banco de madeira da estação e passou a refletir. Haveria mesmo alguém lá em cima organizando as coisas da terra? Ou os homens tinham liberdade para agir impunemente? Muitas questões lhe vinham à mente. Por fim, lamentou a miséria daquele homem e como se captasse a resposta vinda do alto considerou:
— Pobre infeliz! Já está pagando a dívida aqui mesmo. Só que ainda não se deu conta do fato.
Chico Deca comentaria apenas com a esposa o que viu naquele dia e o quanto o episódio lhe frustrara. Dona Meire o confortou penalizada.
— Deus escreve certo por linhas tortas, e nada acontece sem que Ele tome conhecimento.
Teria seu esposo a devida recompensa por ter sido generoso, mesmo que a alguém que não merecesse. Era assim que entendia Dona Meire.
***
Era fim do mês de outubro de 1979.
Edvaldo, o irmão do proprietário do crediário, gerente do negócio naquela cidade, homem de conduta ilibada, havia indicado Chico Deca como vendedor, embora sua situação de saúde não fosse favorável àquele tipo de trabalho. O patrão, contrariado, aceitou, mas, homem de pouca educação e rude no tratamento com as pessoas, não tolerava a presença de crianças no ambiente de trabalho. As crianças sabiam e evitavam frequentar o ambiente quando o proprietário estava presente. Quando Edvaldo estava no comando, até fazia questão de que os filhos dos vendedores visitassem o local para ajudarem os pais, recomendando sempre muito cuidado, principalmente com os vidros. Enfatizava que trabalho dignificava o homem e tal exercício deveria ser incorporado ao cotidiano das crianças desde cedo, tomando-se, claro, as devidas precauções.
Naquele dia, não vendo de sua casa o Opala vermelho em frente ao salão improvisado do crediário onde Chico Deca trabalhava, Nilton e Nando resolveram aparecer. Entraram no pequeno salão alugado pelo proprietário e começaram a juntar alguns papéis espalhados, barbantes e outras sobras de material, acumulando-os no canto da sala. De repente, o proprietário entra sorrateiro e flagra os dois meninos. Indignado, ele berra com todos os pulmões:
— Caramba , Edvaldo! Quantas vezes terei de falar que não quero esses mirins aqui dentro, atrapalhando o serviço? Vai que um deles se corta nesses vidros ou some alguma coisa daqui, vou cobrar de você! Já foi avisado! — vocifera o homem, perdendo o controle, tamanha a raiva a transparecer em sua face cor de fogo.
Chico Deca, extremamente magoado, dirige-se até os filhos e, afagando suas cabeças como a aliviar a mágoa pelas grosserias que acabara de ouvir, fala baixinho:
— Meus filhos, vão para casa ajudar a mãe de vocês com os pequenos, já vou terminar aqui e seguirei para casa. Está bem? Vão!
As crianças se afastam tristes. Não entendiam o porquê daquela atitude. Sempre que podiam, ajudavam ao pai e aos outros vendedores, ouvindo suas aventuras nas cidades por onde passavam, num clima alegre e descontraído. Enquanto organizavam os materiais e recolhiam as sobras, mantendo o ambiente sempre limpo, Nilton e Nando não desligavam os ouvidos de cada detalhe das suas histórias. Adoravam imaginar o ambiente e as situações que o pai e seus companheiros descreviam para passar o tempo enquanto montavam os quadros, preparando-se para a jornada do dia seguinte.
Nesse ínterim, Edvaldo arrastara o irmão pelo braço, falando baixinho em seu ouvido:
— Ô meu irmão... — falou com voz sentida —, esses meninos são filhos de Chico Deca. Sempre estão por aqui nos ajudando, jamais nos atrapalharam. Preste mais atenção da próxima vez. Procure saber se as pessoas que estão aqui não são parentes dos nossos funcionários antes de enxotá-las como cães. Você deixou a todos muito constrangidos aqui hoje. Sugiro que não repita mais isso porque há de perder o seu negócio, sendo eu próprio o primeiro a abandoná-lo.
O homem ficou pálido diante da advertência do irmão, a quem tinha enorme gratidão pelo sucesso do seu negócio.
Aproximando-se de Chico Deca, falou gaguejando:
— Puxa... Chico Deca! Queira me perdoar... pela besteira que acabei de falar. Não sabia que eram seus filhos. Mas nada do que eu fale agora justificará a forma como agi. Estou envergonhado e, sinceramente, não sei o que dizer. Lamento — completou o patrão, saindo da sala.
Chico Deca, de cócoras, arrumando seu pacote, nada respondeu. Mas seus olhos estavam úmidos... Lágrimas desciam pelo seu rosto, sem que parasse de fazer o serviço. O único som que se ouvia era o dele próprio, tentando não assoar o nariz , sorvendo o ar com força, disfarçando a emoção. Não queria que seus companheiros o vissem chorando. Nada o magoava mais no mundo do que ouvir alguém destratando seus filhos. Sem carinhos exagerados, do jeito dele, não havia quem tivesse tamanho zelo pelos próprios filhos quanto aquele homem humilde e enfermo, cuja determinação não conhecia obstáculos. Terminado o serviço, com um nó na garganta, juntou seu pacote de quadros, caprichosamente embrulhados e, cabisbaixo, afastou-se da sala sem uma palavra. Todos entenderam sua atitude, pois cada um daqueles homens ali presentes o conhecia e sabia o quanto ele adorava os filhos, a ponto de pôr em grave risco sua própria vida para proporcionar-lhes um mínimo de conforto. Todos viam sua alegria estampada no rosto sempre que os filhos apareciam no salão. Prestimosos, preocupados com sua saúde, desejando aliviar-lhe a fadiga que lhe causava aquele trabalho feito de cócoras, com os pontos de aço cirúrgico a ferir-lhe o tecido do abdômen, as crianças o ajudavam a fim de acabar rápido a tarefa para que pudessem voltar para casa, pondo fim à angústia de Dona Meire, que jamais deixava de se preocupar com seu estado de saúde.
Foi aquele um episódio marcante. Um dia em que muitos aprenderam valiosa lição de humildade e fortaleza moral.
Em solidariedade ao amigo, nenhum dos funcionários jamais comentaria aquele incidente.
***
No ano seguinte, 1980, após o período do crediário, que fracassara devido à queda nas vendas e à má administração de seu proprietário, Chico Deca voltou à roça, agora com seis filhos. O antigo patrão o recebeu de braços abertos, oferecendo-lhe o melhor de suas terras para que as cultivasse. Agradecido, pôs a mão na massa, acompanhado por Nilton e Nando, ainda crianças de 11 e 10 anos, respectivamente. Precavido, havia pagado para que amigos fizessem o trabalho de preparação do solo no ano anterior quando, conseguindo juntar algum dinheiro, financiou as despesas. Dona Meire o ajudava como podia, dedicando algumas horas por dia, ajudando-o a plantar e limpar o mato das plantações.
Nilton e Nando, os dois mais velhos, comoviam-se sempre ao ver o pai abandonar a enxada e sentar-se com a cabeça entre os joelhos, pálido, tentando vencer a profunda náusea que o acometia de repente. Alguns minutos depois, refeito, voltava à lida sem demonstrar qualquer desconforto. No fundo, seu esforço era enorme para manter uma aparência de bem-estar quando, na verdade, seu organismo reclamava por descanso.
Quase quatro anos ainda se passariam repleto de privações e mais dois filhos nasceriam até que houvesse outra oportunidade de retornar à capital, ideal que Chico Deca jamais abandonara.
***
Mais de 25 anos se passaram. Chico Deca completara, há pouco, 61 anos de idade. Dez filhos criados, dez netos a iluminar os seus dias, uma espaçosa casa num bairro da periferia de Fortaleza, todos os filhos trabalhando, os que haviam casado acertaram nas escolhas e viviam em harmonia, essa era, agora, a sua realidade. Nilton trabalhava há quase 20 anos no ramo de transportes, um emprego bem remunerado. Nando, depois de ralar por mais de uma década como autônomo do ramo metalúrgico, tornara-se empresário no ramo de vídeo, com a ajuda dos irmãos caçulas —, Tito e Yago, gêmeos nascidos na capital — a quem sempre atribuía o sucesso da empresa. Ciro, o terceiro filho, era funcionário de uma grande empresa do ramo de farmácias e laboratórios, como parte da equipe de administração. Dinda, o quarto filho, seguiu os passos do pai e supervisionava um setor da fábrica têxtil em que Chico Deca trabalhara por quase 25 anos. Régis tornara-se sócio de Nando em uma de suas lojas, depois de trabalhar por anos como estoquista de empresas varejistas. Márcio, o mais calado, era exímio artista plástico e se dedicara a confeccionar suas pinturas, enquanto ajudava aos irmãos nas lojas nos dias de pico. Paola, filha única, casara-se com Richard há alguns anos e tinha um filho, Pierre, a quem se dedicava enquanto zelava pelo bem-estar dos pais, já que sua casa era no segundo piso da deles. Pedrinho, ainda solteiro, seguia os passos de Ciro, trabalhando para uma grande distribuidora de medicamentos. Os gêmeos começaram a vida profissional ao lado de Nando, desde que abrira a primeira loja em meados do ano de 2002, quando absorvera primeiro a Tito, e, dois anos depois, Yago, que por dois anos ralara como vendedor em boxes de venda de cartões telefônicos na praça principal da cidade. A família estava bem amparada. Todos com ensino médio concluído, e os três mais velhos com nível superior. Chico Deca era um homem feliz embora seu estado físico estivesse cada vez mais decadente.
À exceção de Nilton, todos os filhos moravam vizinhos. Considerava-se um vencedor, não fosse a saúde ter se agravado de forma considerável nos últimos dois anos.
***
Era o dia 30 de junho de 2008. Chico Deca acordou, naquela manhã, impressionado com o sonho que tivera durante a noite inteira.
— Meire... — falou Chico Deca com voz pausada, lembrando com nitidez cada detalhe do sonho que tivera —, sonhei com aquele tempo em que fomos para Pacajus. Tudo com riqueza de detalhes. Impressionante. Cada palavra dita, cada situação vivida, cada lágrima que choramos na calada da noite... Tudo se descortinou com magnífica precisão como se assistisse a um filme.
Com olhos marejando ao recordar aqueles momentos tristes, Dona Meire o abraça confortando-o.
— Tudo aquilo passou, meu nego. Tudo foi aproveitado da melhor forma possível. Graças àquelas dores, conseguimos tudo o que esperávamos da vida. Era uma prova necessária. Deus nos testava os limites para encararmos as duras provas que nos aguardariam. Não fique magoado com as pessoas que, de alguma forma, nos feriram, elas foram instrumentos de Deus em nosso favor.
— Não guardo mágoa de ninguém — fala Chico Deca, pensativo —, nem mesmo do Dr. Marcondes. Minha teimosia e orgulho, na época, nos proporcionaram mais de quatro anos de imensas dificuldades e, mesmo conseguindo voltar à capital, ralamos por mais de dez anos até conseguirmos realizar nossos primeiros projetos. Só a mim cabe a culpa. Apesar do remorso que guardei por longos anos por não ter engolido meu orgulho, acho que foi mesmo providencial. Serviu-nos de exercício. Vencemos!
Chico Deca acordara cansado naquela manhã. Sentia o corpo dolorido e não tinha ânimo para levantar-se. Apesar do frio que sentia — resultado de uma febre leve, mas insistente —, não estava disposto a se expor ao sol como fazia todas as manhãs. Nos últimos dias, estava mais introspectivo, dormia quase o dia inteiro e raramente saía à calçada à noitinha para ouvir as histórias de Nando e Ciro, os animadores do pequeno público formado apenas pela família. Sua rotina resumia-se a escrever, algumas horas, seu diário em forma de literatura de cordel. Do quarto, ouvia as risadas estrondosas de Ciro quando ouvia algo engraçado. Apesar do enorme desconforto que sentia por ter o estômago e intestino sempre inflamados, ainda curtia a alegria de seus filhos embora não mais pudesse participar como antes.
A despeito da fé em que Deus lhe daria uma solução, entendia que seu corpo poderia não suportar a longa espera. Há pouco mais de dois anos, descobrira, depois de uma longa jornada a médicos e hospitais, que seu fígado estava inoperante de forma definitiva, sendo sua única esperança um transplante do órgão. Afastara-se do trabalho, sendo, desde então, remunerado pelo Seguro Social. Não reclamava. Havia passado por inúmeros problemas durante toda sua vida. Casara-se cedo. Aos 21 anos de idade, já era pai do primeiro filho. Passara a maior parte da vida trabalhando, arduamente, nas lavouras do sertão do Cariri, sul do estado do Ceará. Lá, tivera quase todos os seus filhos. Criara todos dentro de valorosos princípios morais, muito embora fosse semianalfabeto. Jamais um deles lhe dera trabalho quanto ao uso de álcool ou outra droga qualquer. Com apenas três deles ainda solteiros, poder-se-ia dizer que Chico Deca e Dona Meire eram um casal vencedor. Embora tenham passado a maior parte da vida na privação, em busca de sobrevivência, lutando para manter a numerosa família, sentiam-se realizados materialmente, não só por terem criado seus filhos com dignidade, mas também por conseguirem aquilo que era o maior sonho material de suas vidas: a casa própria. Tão logo a construíram em idos de 1992, com a ajuda de alguns dos filhos mais velhos, que trabalhavam duro desde a infância, Chico Deca começara a sentir-se mal. Entre semanas de trabalho duro numa fábrica têxtil e as idas ao hospital, foi levando os dias, e assim se passaram quase 15 anos até descobrir que havia contraído Hepatite C, quase 30 anos antes, quando sofrera a intervenção cirúrgica para a retirada do apêndice, procedimento que, por pouco, não lhe valeu a vida. Era jovem à época, por isso conseguiu superar e seguir em frente.
O dia seguia sua rotina. Chico Deca pensava sobre até quando suportaria aquele mal-estar. Uma rigorosíssima dieta alimentar o privava de quase tudo. Perdera, nos últimos dois anos, mais de 12kg de uma massa corporal de não mais de 62kg. Seu peso era controlado com rigor pelos médicos do Hospital Universitário, pois havia passado por uma longa e dolorosa bateria de exames e exercícios na fila de espera de transplante de fígado, sendo tal condição um pré-requisito. Precisava manter o peso acima dos 50kg para que fosse viável a cirurgia. Na verdade, os estragos causados pela paralisia do fígado já eram demasiado grandes, e alguns, irreversíveis, como as três hérnias que tinha, sendo uma na virilha (região inguinal), uma no umbigo (umbilical ou peri-umbilical) e outra denominada “incisional”, que era a mais dolorida, por formar-se no exato local da cirurgia que havia feito em 1979. Além disso, havia as varizes no esôfago. A qualquer momento, poderiam estourar, fazendo com que expelisse sangue pela boca, numa agonia que, segundo informações dos médicos, era a fase mais crítica da doença e a que determinava o fim. Às vezes, pensava que, quando o dia chegasse, estaria tão debilitado que os médicos escolheriam alguém com mais chances e ficaria para trás, entregue à própria sorte.
O tratamento era rigoroso. Controle total de tudo o que ingerisse. Remédios para amenizar a insuficiência do fígado causavam-lhe inúmeros desconfortos, em consequência dos efeitos colaterais, inflamando partes do corpo, inclusive os rins, provocavam também total impotência sexual devido à quantidade enorme de hormônios femininos que compunham sua fórmula. Tais remédios, associados ao avanço gradual da doença, causariam danos que levariam à falência de outros órgãos, caso o transplante não viesse logo. Por duas vezes, havia sido chamado no meio da noite para comparecer ao hospital, mas, por não ser ainda o primeiro da fila, era convocado como uma segunda opção, caso o primeiro da fila estivesse impossibilitado de comparecer, dada a urgência que se verifica em cirurgias dessa magnitude. Arrumava-se esperançoso e auxiliado por algum dos filhos, deslocava-se rápido ao hospital, na esperança de ficar internado e fazer o tão esperado transplante. Ao chegar ao centro de transplantes, via os candidatos da fila de espera a postos. Alguns em melhor condição, outros em pior. Caberia à equipe médica escolher um, de acordo com o grau de avanço da doença e os riscos que sua evolução poderia desempenhar para o sucesso da cirurgia. Chico Deca, embora sonhasse em recuperar sua saúde, não ignorava a dor daqueles, que como ele enfrentava a mesma situação, e pensava quão cruel era tudo aquilo. Para que um fosse beneficiado, outros estariam praticamente condenados à morte. Viu durante aqueles dois anos, dos cinco na sua frente, apenas um sobreviver. Três morreram antes de fazerem o transplante, e um morreu dois dias após a cirurgia, por rejeição. Os médicos não conseguiram conter uma infecção, e o órgão transplantado foi atacado pela defesa do organismo como sendo um corpo estranho. Foi fatal.
Todos os pacientes são submetidos, enquanto esperam, a sessões de exercícios respiratórios. Exames rigorosos são realizados, mês a mês, para detectarem de forma contínua o avanço da doença, mantendo a classificação em uma tabela numérica na qual o grau máximo para o candidato a transplante não pode ultrapassar determinado nível. Todos, sem exceção, participam de palestras com a equipe médica para receberem o máximo possível de informações sobre os riscos do procedimento. Por isso, não só pacientes, mas também seus familiares são acompanhados por psicólogos para prepará-los para as consequências prováveis da cirurgia.
Viver na fila de espera de um transplante significa ter sua vida contada a cada minuto como num cronômetro em contagem regressiva. Acordar a cada dia vendo a vida escapar-lhe enquanto seu corpo se degrada de forma irremediável e irreversível. Ver as pessoas olhando-o como se fosse um pobre infeliz, cuja única certeza é a de que vai morrer, não importando qual órgão tenha falhado primeiro. Cada paciente das filas de espera está, de maneira inevitável, no corredor da morte, esperando apenas uma absolvição que, para a maioria, nunca virá. Só quem tem um ente querido numa situação real, de luta pela vida, pode avaliar a aflição, o desespero e o quanto a doação de órgãos — não obstante a dor da perda de um ente amado — poderá suavizar o sofrimento de tantos. É comovente ver a alegria de um paciente condenado à morte quando o telefone toca, e alguém, do outro lado da linha, diz: “É sua vez, apareceu um doador compatível!”. É uma avalanche de pensamentos, tanto do paciente quanto da família. Pensa-se de tudo: “E se o transplante não der certo e ele morrer na sala de cirurgia? Por que arriscar perder os dias que ainda tem, embora sem qualidade, por uma arriscada cirurgia que poderá levá-lo à morte daqui a poucas horas? E se der certo, quão reconfortante será ver o ente querido livre da dor e do sofrimento aflitivo da falência dos órgãos que o levaria à morte? E a família do doador, como estará recebendo a notícia da morte de seu ente amado? Como agradecer a generosidade daqueles que, diante da perda, ainda pensam na dor alheia, e autorizam a doação dos órgãos?”. São muitas reflexões...
***
O relógio marcava 15h35min quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, uma voz educada fala como os profissionais do ramo de telemarketing:
— É da casa do Sr. Francisco Isidro Cordeiro?
— Sim — responde Dona Meire, pensando se tratar mais uma vez de alguma empresa interessada em vender-lhe algo via telefone.
— Aqui é Adriana, do Hospital Universitário Walter Cantídio — o coração de Dona Meire bate descompassado esperando as próximas palavras. — Apareceu um doador compatível...
Dona Meire quase perdeu a noção da realidade. Chico Deca era agora o primeiro na fila. Ela sabia o real valor daquelas palavras. Quase não ouviu o resto da mensagem da mulher do outro lado da linha.
Saiu gritando pela casa:
— Um doador, meu nego! — correu para o quarto para abraçar o marido como se fosse uma criança que acabara de receber o presente mais desejado da vida. — Um doador! Um filho de Deus apareceu para te salvar, meu nego!
O rosto de Dona Meire transbordava alegria.
— Um doador? — pergunta Chico Deca como se a ideia fosse absurda ou apenas um trote. — Tem certeza, Meire?
— Sim, meu nego! Claro que tenho! — responde ela quase fora de si. — Vamos nos aprontar. A partir de agora, só alimento líquido, e você deverá estar no hospital às 19h em ponto. A cirurgia será ainda hoje.
— Meu Deus! — fala Chico Deca com voz embargada pela emoção. — Agora é minha vez! Há quanto tempo espero essa notícia...
Exultante, Chico Deca anda para dentro e para fora, preocupado com a própria aparência:
— Meire, sinto um pouco de febre... E se os médicos acharem que ofereço risco e escolherem outro?
— Não pensa nisso, meu filho, você está apenas emocionado, é normal. Depois, com o sangue AB positivo, você é único. Esqueceu? Nada vai dar errado, homem. Vai tomar um banho frio e vamos controlá-la, você estará ótimo quando chegar a hora. Esse momento é muito especial, vá contar a novidade aos meninos — sugere Dona Meire, dando-lhe injeção de ânimo.
— Não sei o que faria sem você, Meire. Às vezes, penso que, se não fosse por você, já teria desistido de esperar. Não suporto mais viver assim. As crianças me contam os vexames que dou quando me batem as crises de inconsciência, em que sequer consigo comer sozinho; troco peças de roupas, vestindo-as invertido; ando nu pela casa; sou carregado ao banheiro como um lunático... Falo coisas sem sentido... Não aguento mais isso... Não aguento! — desabafou com lágrimas nos olhos.
— Nem pense nisso meu amor — fala Dona Meire, comovida —, tudo isso já passou. Agora será vida nova. Tudo ocorrerá bem se Deus quiser, e será só alegria.
Após alguns minutos em que Dona Meire lhe injeta incentivos, antevendo sua volta, transplantado e vivendo com qualidade, ele logo volta a si, meio que envergonhado pelo que acabara de dizer.
— Tem razão! Vou contar aos meninos a novidade. Finalmente o dia chegou. Meu Deus! — comenta Chico Deca, empolgado, saindo apressado para espalhar a novidade.
Àquela hora da tarde, apenas Paola, Márcio e Nando encontravam-se em casa. Paola, sua fiel companheira durante os últimos dois anos, abraçou-o forte, com sorriso estampado no rosto. Mal podia acreditar que tudo aquilo que vira nas reuniões do Centro de Transplante agora teria um final feliz. Não imaginava ver o pai morrer como os pacientes que vira lá. Homens e mulheres, esqueléticos, com barrigas enormes, com inúmeras hérnias, a locomoverem-se penosamente pelos corredores, muitos deles sem sequer uma companhia da família. Terrível. Agora via a satisfação no rosto do pai. Ela mesma estava muito feliz por ele. Márcio o felicita pela ótima notícia. Nando, entretanto, não participava da mesma opinião. Como receberia ele a notícia?
Acompanhado de Dona Meire, Chico Deca bateu no basculante de vidro da janela de Nando que dava para o seu quintal, entusiasmado:
— Nando? Abre aqui, rapaz! Notícia importante! — falou com alegria Chico Deca.
Meg, a esposa de Nando, apressou-se em abrir a janela, curiosa para saber do que se tratava. Nando descansava após o almoço sempre tardio, por volta das 14h30min.
— Acabei de receber a confirmação: tem um doador compatível. Farei a cirurgia ainda hoje.
Nando encontrava-se deitado em sua rede, no horário de descanso que seu trabalho permitia no meio da tarde. Seu corpo recebeu um impacto equivalente ao de uma batida automobilística, enquanto o pai o esperava ansioso para receber os parabéns pela notícia. Sem saber como fazer para não contrariá-lo e aos outros, que comemoravam alegres, pensou no que dizer, mas as palavras embargaram-se em sua garganta. Nando sentiu uma sensação estranha, uma profunda angústia a dominar-lhe a alma. Era de conhecimento de todos, inclusive de seu pai, que era contra a realização de um transplante de fígado naquelas condições, devido à grande debilidade física em que se encontrava ele após mais de dois anos na fila de espera. Temia que ele não suportasse sequer a longa e complicada cirurgia que deveria durar entre sete e dez horas para ser executada.
Nando engoliu em seco. Profundamente abalado, olhou para trás ainda deitado na rede e falou, tentando não revelar sua emoção:
— Que bom, papai. Finalmente. É o que o Senhor sempre quis. Desejo sucesso nessa dura prova. Que Deus esteja com o Senhor — conclui Nando, tratando-o como “papai”, palavra que há muito tampo não usava.
Sem conseguir encarar face a face o próprio pai pela primeira vez na vida, escondeu a cabeça pelas longas abas da rede, torcendo para que ele se desse por satisfeito e saísse, para dar-lhe tempo de recuperar-se daquele tremendo choque.
Parecendo adivinhar a angústia que o filho sentia, Chico Deca se afasta acompanhado de Dona Meire, para dar as boas novas a netos e noras das casas em frente, enquanto Dona Meire corria ao telefone para informar toda a família e parentes distantes. Fora um ato de generosidade de seu pai, já que Nando jamais escondera a opinião a respeito daquele procedimento cirúrgico, por temer pela sua vida. Em resposta, Chico Deca enfatizava sempre que preferia morrer, tentando a cura via transplante, a definhar até a morte em consequência da falência das funções hepáticas e suas desastrosas consequências, que o matariam de forma humilhante e dolorosa. Nando concordava nesse ponto, embora com os conhecimentos e estatísticas disponíveis sobre o assunto, não conseguisse ver de forma otimista o resultado daquele procedimento.
Meg, sua esposa, o conforta:
— Meu filho — fala carinhosa, tentando amenizar a angústia profunda que invadia a alma do marido —, alegre-se com a oportunidade que recebe agora seu pai. Ele tem sofrido tanto todo esse tempo na expectativa desse momento. Sabemos que ele corre sério risco de sucumbir, mas procure entender sua situação. Constantemente disfarça a dor que sente para que a família não sofra junto com ele. Com frequência, é acometido de febre, mal-estar, crises de vômito, perda da consciência e, quando melhora um pouco, à custa de fortes remédios que toma para aliviar a falta do fígado que já está inativo, vem a frustração. Coitado do Seu Chico. Nos momentos de alegria de vocês, enquanto tocam e cantam, ele se aproxima, pois adora música e também toca, mas não consegue permanecer por muito tempo, sequer observando vocês. E isso porque a dor que sente é enorme, meu querido. Dá para ver, em seu rosto, que está disfarçando para que vocês fiquem e permaneçam felizes. Não seja egoísta. Compartilhe da alegria dele nesse momento e o estimule. Ele precisa de sua aprovação. Por favor!
As ponderações de Meg demonstravam extrema clareza de raciocínio. Tudo aquilo era verdade. A generosidade do sogro era tamanha que sacrificava a si mesmo para ver esposa, filhos e netos felizes, muito embora a dor lhe consumisse as forças a cada dia, minando ainda mais a possibilidade de sucesso na cirurgia.
Considerando as palavras da esposa, Nando resolve, depois de refazer-se das angustiantes impressões que lhe afligiam a alma, visitar seu amado pai. Sai pela garagem e, parando ao lado da janela do quarto de Chico Deca, grita como sempre fazia quando chegava ou saía como num ritual:
— Seu Chico? Seu Chico?
Nenhuma resposta.
Preocupado, contornou pela calçada e entrou casa adentro à procura do pai, encontrando-o saindo do banho.
— Então, Seu Chico... É o grande dia. Vai mesmo entrar na faca?! — fala em tom brincalhão.
— Sim. Por acaso tenho outra opção? — responde jovial como sempre Chico Deca. — É isso ou morrer em menos de três meses. Assim, deduzo que é melhor arriscar mesmo que não dê certo, do que morrer sem tentar. E seja o que Deus quiser.
— Tem toda razão. Hoje é segunda-feira, dia de movimento pesado nas lojas até as 21h, por isso, se eu não estiver aqui na despedida, desejo-lhe sucesso, e que amanhã possamos nos ver. — Fala Nando, tentando disfarçar a emoção que sentia ao pronunciar aquelas palavras com quase nenhuma convicção, apelando para o seu pouco talento de ator.
Chico Deca estira a mão como costumeiramente fazia Nando, fingindo uma formalidade que nunca existira. Aquele era um gesto característico do filho para demonstrar o enorme respeito que tinha pelo pai. Agora, ironicamente, o pai tomava a iniciativa de fazê-lo como a lhe prestar homenagem. Nando sentiu o corpo tremer de forma estranha. Aquela brincadeira era sempre iniciativa dele, jamais do pai. Durante anos fazia aquilo, sempre que um deles tinha de se ausentar por algum tempo fosse a trabalho ou a passeio, como uma despedida, caso algo desse errado e Chico Deca correspondia à altura. O que ficava fazia as recomendações e desejava sucesso ao que partia. Porém, naquele dia, Chico Deca se adiantou, olhando fixamente nos olhos de Nando por alguns segundos em silêncio, como se aquilo significasse uma mensagem codificada. Nando entendeu perfeitamente o recado, embora não fosse expresso com palavras. A afinidade de suas almas permitia certo grau de entendimento antecipado do que se passava na mente um do outro. Em muitas ocasiões, Chico Deca entrava na casa de Nando no exato momento em que este se preparava para sair, para consultá-lo a respeito de algum assunto relevante no momento, como se antevisse os pensamentos do filho.
Sem conseguir segurar o olhar fixo e amarelado do pai, Nando aperta sua mão com força e, em tom de brincadeira, como de costume, puxa-o medindo as forças, tentando ganhar tempo para refazer-se. Trouxe o amado pai de encontro ao peito a fim de dar-lhe um abraço como há muito tempo, não o fazia, sentindo a garganta doer, como algo a entalar, como um nó. Uma tristeza indescritível invadia-lhe a alma naquele momento. Sentia que era aquela a última vez a ver seu pai em vida. Com o coração descompassado e uma estranha sensação a dominar-lhe cada músculo do corpo, Nando afaga a cabeça do pai, como era de costume e, sem mais nada dizer, dá as costas sem encará-lo, afastando-se rápido para entrar em profunda meditação.
Pelo resto da tarde, Nando não falou com ninguém. Deitou-se na rede, mas não conseguiu dormir o resto do tempo que dispunha. Ao invés disso, uma sensação de cansaço o abateu de repente. Em pensamento, via com nitidez as inúmeras vezes em que, ao sair do sol, Seu Chico — como carinhosamente o tratava — já estava de pé, aguando plantas no quintal ou saindo para comprar pão para sua casa e de todos os filhos. Nando acordava com o barulho das conversas quase no seu ouvido e abria a janela de sua sala, que dava para o quintal dos pais. Às vezes, pela janela mesmo, cumprimentava-os como de costume, tratando-os sempre de forma bem humorada, dirigindo-se a eles em tom de “formalidade”:
— Dona Mamãe?
Costumava dizer fingindo estar longe mesmo quando ela estava a alguns passos de sua janela.
— Seu Chico? — dirigia-se igualmente ao pai, que nunca conseguia esconder o sorriso diante daquela atitude respeitosa, mas em tom de brincadeira característica do filho.
Aquelas palavras substituíam os tradicionais “bença, mamãe” e “bença, papai”, costume ainda em voga para todos os filhos do casal, exceto Nando, que, por ter sido constrangido quando criança a “dar a bença” a muitas pessoas que não conhecia, por pura imposição da mãe e da avó paterna, nutria verdadeira aversão àquele ritual. Dessa forma, ao proferir tais palavras, antes de qualquer outra pela manhã, Dona Meire e Chico Deca respondiam como de costume: “Deus te abençoe, meu filho!”. Nando ria sempre ao perceber a força da tradição.
Como num sonho breve, Nando reviu inúmeros momentos de sua vida, sempre em companhia do pai. Parecia ser aquele dia o fim. Algo lhe dizia que não mais veria o pai a andar pelo quintal, cuidando das plantas ou tirando brincadeira em sua janela.

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