HISTÓRIAS DESSA E DE OUTRAS VIDAS - Livro

SINOPSE: 5 histórias dramáticas abordando os seguintes temas: acidente de trânsito; morte prematura; suicídio; assassinato e transplante de órgãos. Cada uma das tramas mostra os momentos finais da vida de cada personagem; a angústia do transe, e o despertar sempre único conforme as condições morais e intelectuais de cada um.
Um livro repleto de drama que esmagará seu coração.

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(LEIA O PRIMEIRO CAPÍTULO)
Histórias Dessa e de Outras Vidas
Luiz Cezar Carneiro Rodrigues
Revisão: Edísio Fernandes
1ª Impressão – Agosto/2008 – do 1° ao 1000° volume
Arte: Thiago Carneiro
Foto da capa: Thaddeus Rodrigues
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP







Nenhuma parte desta obra pode ser copiada, fotocopiada, publicada, ou divulgada por quaisquer meios criados ou que venham a se criar sem prévia autorização do autor
Todos os direitos reservados ao autor.
lcezar36@hotmail.com

AGRADECIMENTOS
Ao meu pai, Seu Chico Deca. Por ser o homem extraordinário que conheci.
Aos meus irmãos Thiago, Thaddeus e Reginaldo; pela colaboração ativa no projeto.
Aos meus filhos Lucas e Luana, por todo o apoio e carinho em todos os momentos.
À minha adorável Ana, companheira de todas as horas; pela fé incondicional em meus projetos.
À minha mãe, D. Maria; irmãos, colaboradores e amigos, pelo incentivo e fé que sempre me impulsionaram.
A Deus e todos os companheiros do mundo maior, pela assistência generosa durante todo o desenrolar do trabalho que resultou nesta obra.
Muito obrigado.









Histórias Dessa e de Outras Vidas

SUMÁRIO

Apresentação................................................................................................................6
Prólogo..........................................................................................................................7
CAPÍTULO I
Uma manhã qualquer.................................................................................................10
CAPÍTULO II
Um companheiro inesquecível....................................................................................34
CAPÍTULO III
Uma história de devoção.............................................................................................65
CAPÍTULO IV
Mobilização e Recrutamento.......................................................................................89
CAPÍTULO V
Quando a dor alivia a dor...........................................................................................115


Algumas palavras do autor

A presente obra, narra de forma simples, mas sem se distanciar dos princípios fundamentais da Doutrina Espírita, cinco eventos. Cada um deles foi pensado de forma a criar episódios semelhantes do cotidiano de todos nós. Ao ler essa singela obra, o leitor certamente se identificará com um ou mais dos personagens que aqui ganharam vida. O grau de realidade com que cada evento é narrado exige, em alguns momentos, certo controle dos nervos e das emoções. A obra se destina, precisamente, aos leitores espíritas e simpatizantes, sendo descrita em linguagem simples e acessível. Na verdade, a obra foi pensada para agradar a todos aqueles que gostam de uma boa história contada sem rodeios. Os eventos são narrados em forma de tragédia como acontecem na realidade. Porém, a diferença está no desfecho. Ao contrário daquilo que presenciamos todos os dias, seja como testemunhas oculares ou consumidores das mídias faladas, escritas, ou imagéticas, a presente obra oferece algo mais que é de suma importância para as pessoas que creem na continuidade da vida após a morte. Isso porque, ao invés de narrar simplesmente o que toca as nossas sensações imediatas, principalmente a visão, o autor vai além, mostrando os primeiros passos de uma nova vida, descrevendo as primeiras impressões de um novo limiar.
Algumas opiniões dos personagens dessa obra podem surpreender pela maneira visionária com que são expostas. Entretanto, tudo o que se apresenta tem fundamento baseado nas probabilidades que comportam o movimento da História da humanidade a partir de fatos que se sucedem desencadeando eventos de maior monta.
É de fundamental importância que os leitores apreciem as histórias aqui narradas como algo provável de se realizar no mundo real, haja vista a semelhança delas com acontecimentos do passado e do cotidiano.

O Autor.













Prólogo

Visando a divulgação das ideias espiritualistas, essa obra narra alguns eventos de forma clara e objetiva, contemplando os dois ambientes que comportam a vida humana, de acordo com a Doutrina Espírita, a saber: o material e o espiritual. São casos aparentemente corriqueiros no dia-a-dia das pessoas, mas que analisados sob a ótica da imortalidade, tomam nova forma.
Raramente, paramos para pensar na importância das coisas que nos parecem insignificantes, e até óbvias. Quando acontece um evento qualquer, nossa participação direta ou indireta pode estar, de alguma forma, desencadeando uma série de acontecimentos, visto que a visualização da cena, o que se ouve, e se presencia ficam marcados em nossa mente, modificando nossa conduta que refletirá em ações no futuro. O óbvio, ou aquilo que muitos dão pouca ou quase nenhuma importância foi, em alguns casos, o motivo pelo qual a humanidade evoluiu até o momento presente. Não fosse a curiosidade de homens de gênio investigativo, não teríamos a lei da gravidade, a energia elétrica, a informática, as inovações na medicina e nas técnicas, de uma forma geral. Assim, esta obra, que consta de alguns pequenos contos, nos leva a meditar sobre o quanto os fatos, mesmo sendo corriqueiros, podem fazer a diferença em nossas vidas. Em síntese, os grandes eventos que mudaram o mundo surgiram do simples ato de alguém nascer, de educar-se, de desenvolver ideias, aparentemente ingênuas, que no curto e médio prazo modificaram, de forma significativa, a sociedade e o meio ambiente em que vivemos.
Esta obra se destina, portanto, a todos aqueles que buscam a compreensão das verdades mais complexas a partir da observação de fatos do cotidiano. Não exige conhecimentos profundos sobre as ciências, nem mesmo da doutrina espírita, além do trivial.
Para efeito de informação aos leitores não espíritas, ou mesmo para os que o sejam, mas que ainda não compreenderam, satisfatoriamente, os princípios básicos da doutrina espírita, aqui vão algumas informações necessárias ao perfeito entendimento do conteúdo desta obra.

1. Segundo a Doutrina Espírita, Deus é a inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas (Pergunta nº. 1 de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec);
2. O espírito, como o ser pensante que habita em nós, é o resultado da evolução do princípio inteligente, cuja origem se perde na noite dos tempos. Assim, todos os grandes homens que habitaram a terra, são o resultado desse princípio, sem exceção;
3. O Espírito, em sua longa jornada rumo à perfeição, pode renascer inúmeras vezes na terra (reencarnação). Primeiro na escala evolutiva dos animais, e somente depois que adquire a consciência, e por conseguinte o livre arbítrio, é que encarna na humanidade, ainda assim, como o último dessa escala (desempenhando o papel de aprendiz), já que ainda está em fase de adaptação a essa espécie. Isso não significa que o espírito que encarna no Homem possa vir a encarnar em animais. A Metempsicose não é admitida na Doutrina Espírita, pois entende esta, que o espírito não pode retrogradar;
4. A morte não é mais que o fim da vida física. A alma (ou espírito) sobrevive sempre e usa o corpo como uma vestimenta, deixando-a sempre que vencida pelo tempo;
5. As afinidades, bem como as antipatias, sobrevivem à morte física. Assim, devemos zelar sempre por fazer o bem e conquistar sempre boas amizades, para que no processo evolutivo, tenhamos sempre boas companhias a nos assistir diante das necessidades típicas do ser humano no aprendizado rumo à perfeição;
6. Todas as pessoas são dotadas de certo grau de mediunidade, que lhes permite o contato com o mundo dos espíritos. Alguns a tem de forma ostensiva e desenvolvem essa faculdade de acordo com sua conduta moral, fazendo dela um instrumento de ascensão ou de queda; porém, a maioria das pessoas, independente de crença, a tem em sua forma mais simples, o que se concretiza na maioria das vezes durante o sono físico, quando então a alma (ou espírito) se liberta momentaneamente do corpo físico e entra em contato com o mundo espiritual de acordo com suas afinidades e interesses;
7. Após a morte, cada um é julgado pela própria consciência de acordo com a gravidade dos seus erros, ou os méritos dos acertos. Assim, a justiça divina se faz presente em cada ser com a mesma eqüidade e justiça, jamais condenando ou perdoando indevidamente. Deus, em sua misericórdia, deixa a cargo de nós mesmos o trabalho de julgar nossas ações, razão pela qual, cada um avalia uma situação de acordo com seus princípios morais, sendo o seu resultado, de responsabilidade exclusiva de cada um;
8. Os laços consanguíneos na matéria não são obrigatoriamente, sinônimos de laços afetivos na vida espiritual, embora no geral, os espíritos com afinidades em comum, escolham encarnar sempre no mesmo círculo familiar. Na vida espiritual, os laços de sangue não determinam a união dos indivíduos, as afinidades intelectuais e morais sim;
9. As verdades pregadas pela Doutrina Espírita, embora possam se revelar a todos na vida após a morte, são percebidas de diferentes formas, levando-se em conta as crenças e convicções que se tinha na terra. No geral, ninguém se tornará um adepto da Doutrina Espírita, apenas pelo fato de constatar após a morte, que a vida continua. A maioria das pessoas em tal situação, apenas adapta suas crenças à nova realidade em que se encontra;
10. Independente das crenças que professamos, Deus acolhe a todos sem distinção, pois é Ele o criador de tudo e de todos. A realidade que se revela após a morte, não distingue espíritas de não espíritas. O processo é semelhante tanto para o crente fervoroso quanto para o ateu convicto. As crenças religiosas são necessidades típicas da nossa incapacidade de compreender Deus como essência, notadamente quando estamos no mundo material. Assim, na terra, temos a oportunidade de escolher a crença que melhor se adapta aos nossos ideais sem que Deus intervenha, já que é a Justiça um de seus maiores atributos.
Feitos esses esclarecimentos, nos resta o desejo de que ao ler esta obra, o leitor reflita sobre si mesmo, pois de uma forma ou de outra, cada um se identificará com algum dos personagens descritos nos eventos que se seguem.
Todos os contos aqui descritos são fictícios. Qualquer semelhança com fatos ou nomes de pessoas conhecidas terá sido mera coincidência.
Boa leitura!
O Autor.
Capítulo I — Uma manhã qualquer

Aos 32 anos de idade, Marco Antônio tinha tudo o que sempre desejou. Um trabalho bem-remunerado, casa espaçosa e mobiliada, uma esposa dedicada, uma filha encantadora, e mais um filho a caminho. Com 1,78 m de altura, 73 kg bem distribuídos, de pele morena clara, olhos castanhos, cabelos castanhos escuros sempre curtos, rosto barbeado com desvelo, Marco Antônio era o típico homem de negócios. Sua empresa no ramo de informática ia muito bem, e certamente a expandiria em breve espaço de tempo para atender à demanda, sempre crescente, haja vista à popularização da internet e todo o seu potencial de consumo. Responsável e zeloso no seu trabalho; em casa, um homem devotado ao lar, carinhoso e atento às mínimas necessidades de sua pequena família. Poder-se-ia dizer que tinha a vida dos sonhos de muitos, pois possuía a maioria dos bens de consumo que tanta gente almeja por toda uma vida.
Eram sete horas da manhã. Marco Antônio acordou cedo, para organizar a ida de sua pequena Laís, de cinco anos, à escola. Carmem, sua esposa, ainda dormia, e como sempre acontecia, Marco Antônio fazia questão de se levantar mais cedo, preparar a pequena, dando banho, fazendo o lanche da escola e o que ela deveria comer antes de sair. Como todos os dias, aquela manhã não apresentava nada de diferente no cotidiano da pequena família.
Marco Antônio vai até a garagem e liga o carro para aquecê-lo um pouco, antes de partir. Laís corre apressada com a ingenuidade típica das crianças de sua idade.
— Papai, me espere!
— Não estou saindo filha, apenas aquecendo o carro. Não sairia sem você — sorri Marco Antônio.
A pequena Laís abre a porta com dificuldade e com a ajuda do pai, sobe no banco traseiro do veículo, onde tinha uma cadeirinha para bebê, mas ela querendo ser esperta, já se recusava a usá-la, afirmando sempre que já era grandinha para ser tratada como um bebê. O pai sorria e sempre a convencia a sentar-se na cadeirinha, para em seguida colocar os cintos e ajustes do equipamento. Para ele, era importante viajar em segurança.
Naquela manhã, mais uma vez, Laís se recusa a sentar-se na cadeirinha, afirmando que ela deveria ser para o seu irmãozinho que em breve viria. Marco Antônio ria gostosamente com a meiguice da filha, embora discordasse de sua teimosia.
Após um breve minuto, Marco Antônio abre o portão definitivamente e se prepara para sair. Carmem estava à porta que dava acesso à sala de visitas, para se despedir de ambos, como sempre fazia. Aproximou-se do carro, e pedindo para que seu marido baixasse o vidro, faz as recomendações costumeiras, coisas que as mães nunca esquecem sempre que os filhos se afastam. Em seguida, chama a atenção da filha:
— Meu amor, já falamos sobre você querer sentar no banco dos adultos, lembra? Compramos a cadeirinha para você, e para sua segurança, é melhor sentar-se nela. Nunca se sabe o que acontecerá no trânsito louco aqui de São Paulo querida!
— Mas mamãe... — protesta a criança.
— Ora Carmem, deixe que ela fique no banco dos adultos hoje, vou dirigir com cuidado, e depois ela vai pôr o cinto, não é filha?
— Sim papai! — fala Laís com os olhos brilhando, se sentindo importante já que seu pai a apoiava.
— Olha lá querido, — salienta Carmem preocupada — não gosto da ideia de uma criança andando no banco de adultos.
— Ora querida, não há motivos para se preocupar, ela está no banco de trás, lembra? E ainda estará de cinto. Não há problema. — Responde o marido convicto.
Carmem beija a filha e, em seguida, o marido. Todas as manhãs ele fazia sempre o percurso escola-trabalho pela manhã, e na volta, a menina era trazida pelo transporte escolar.
O carro ganha a rua e Carmem fecha o portão da garagem se recolhendo para descansar mais um pouco, pois sua gravidez de cinco meses começa a exigir-lhe forças para dar conta das tarefas de casa.

Na rua, o trânsito parecia tranquilo, pelo menos no roteiro que ia até a escola de Laís.
Passaram apenas uns 15 minutos que haviam partido quando o telefone toca.
— Alô!
— É a Dona Carmem quem está falando?
— Sim, eu mesma — responde gentilmente Carmem.
— Meu nome é Cléssio, sou patrulheiro rodoviário. Estou ligando do Celular do seu marido. É que houve um acidente de carro, e no celular dele, o primeiro nome da lista consta: “Casa - Carmem”.
— Meu Deus! — treme de cima abaixo Carmem — o que aconteceu?
— Olha Senhora, não se preocupe, já chamei a ambulância e devem estar chegando. A Polícia já está no local fazendo o controle do trânsito.
Ela agradece com palavras entrecortadas sem saber o que fazer após o homem dar a referência do local do acidente. Imediatamente, Carmem liga para o Pai de Marco Antônio, Seu Joaquim, um Senhor aposentado de 64 anos que mora no mesmo quarteirão. Em menos de cinco minutos a buzina toca e Carmem sai apressada e trêmula, pálida e visivelmente abatida, sem saber o que esperar da situação.

* * *

Dona Maria das Graças, ou D. Graça, como todos a conheciam, era uma mulher pequena e esbelta. Com 1,53 m de altura, pouco mais de 50 kg, mulata, cabelos crespos, não tinha nenhum atrativo físico embora ainda não tivesse atingido a casa dos 40 anos. Perfil franzino era a típica imagem da mulher batalhadora, sempre disposta a sacrificar-se pelo bem dos seus entes queridos. Inúmeras vezes sacrificara a refeição frugal após um dia de batalha pela sobrevivência apenas para ver o sorriso no rosto dos seus netinhos a quem devotara todo o tempo livre que dispunha. D. Graça acordou cedo naquela manhã. Antes de o sol sair, já tinha preparado o lanche dos netinhos pequenos que ficavam sob sua guarda, enquanto sua filha, que trabalhava fora, tentava ganhar a vida. A condição de vida era penosa para aquela família de baixa renda que morava numa favela próximo a uma grande e movimentada avenida da periferia da cidade de São Paulo.
D. Graça era mãe solteira. Tivera Fátima, sua única filha, aos 16 anos. Hoje, aos 39 anos, já tinha dois netinhos um de quatro anos e o outro de apenas 11 meses de vida. Poder-se-ia afirmar que aquela humilde casa de apenas um cômodo com um banheiro pequeno, cuja área total não passava de 35 metros quadrados, era totalmente dependente dos seus esforços. Durante o dia, se dividia entre a tarefa de cuidar dos netos pequenos e consertar roupas para a vizinhança, pois era exímia costureira, embora não usasse mais do que as próprias mãos e uma agulha com linha. Todos reconheciam seus esforços e honestidade. Quando tivera a filha aos 16 anos, fora expulsa de casa. Perambulou pelas ruas sem ter onde passar as noites. Viveu num abrigo público somente até ter a filha, e depois teve de sair, fazendo o que podia para sobreviver, mas jamais perdera a dignidade. Nunca mais se envolvera com homens, dedicando-se exclusivamente à criação da filha. Aos 15 anos, a filha caíra no mesmo erro que ela no passado. Engravidara de um relacionamento inconsequente. Abandonada, procura desesperada amparo em sua mãe, que guardando na lembrança tudo o que passara em situação semelhante, a acolhe de bom grado e pede a Deus que as ampare mais uma vez diante de mais uma difícil tarefa.
Três anos haviam se passado e eis que Fátima se enamorara por um rapaz da vizinhança e mais uma vez engravidou. Como já tinha um filho sem pai, o rapaz achou que não lhe convinha assumir o filho de uma mulher leviana. Julgamento cruel e injusto que muito lhe custaria no futuro. D. Graça mais uma vez, segura a barra, mas dessa vez, chama a filha à responsabilidade e concordam que após seis meses de vida a criança ficaria sob sua guarda, enquanto Fátima deveria arranjar um trabalho, pois viver somente de seus bicos como costureira não daria para manter a elas duas e ainda duas crianças pequenas. Fátima concordou e conseguiu um emprego de doméstica distante algumas quadras de casa, o que lhe permitia dormir em casa todos os dias. D. Graça ficava com as crianças e fazia seus trabalhos manuais na medida de suas forças. Assim, o tempo passava para aquela humilde família, sem maiores expectativas. Dia após dia rezavam para que pudessem adquirir o sustento das crianças e que Deus lhes desse saúde.
— Fátima, minha filha — falou com voz cansada D. Graça —, preciso sair para comprar alguns mantimentos que estão faltando, vou comprá-los enquanto você se arruma para sair. Hoje não amanheci muito bem. Dormi mal. Acordei várias vezes sentindo uma angústia me invadir a alma. Uma sensação de perda me consumia por dentro. Não sei explicar. Por outro lado, uma paz muito grande me invadia a alma, como se um anjo estivesse perto de mim. Não deve ser nada, mas me sinto indisposta hoje, por isso vou comprar logo esses mantimentos e já volto. Vou ficar em casa hoje o máximo que puder.

Pega uma sacola de nylon debaixo de um beliche e sai apressada. Anda algumas quadras, pensando no sonho que tivera na noite anterior. O que significaria aquilo? Estaria para morrer alguém que amava? Pensou nos netinhos a quem se dedicava de corpo e alma.
— Mas eles estão com saúde... — pensou alto D. Graça enquanto se aproximava da larga avenida que dividia aquele trecho da cidade, em duas realidades: a parte alta onde moravam pessoas de maior poder aquisitivo, e a parte baixa, uma pequena favela, onde constantemente alagamentos tiravam o sossego da população carente.
D. Graça olhou para ambos os lados da avenida na primeira via que teria de atravessar, apenas um caminhão ao longe. Atravessou a passos lentos a primeira via, avançou sobre o canteiro central e deu alguns passos na outra mão da espaçosa avenida quando ouviu o barulho de um arrastar de pneus próximo. Apavorada, lança-se para trás instintivamente, era exatamente para onde o carro se dirigia descontrolado, precipitando-se sobre ela com violência descomunal. Foi atingida nas pernas e o corpo desandou, voando em direção ao para-brisa. Seu corpo atingiu o vidro, afundando-o e só não foi lançado para dentro do veículo porque a legislação não mais permitia o uso de vidros sem lâmina de plástico. D. Graça, após bater no vidro com a cabeça e ombros, seu tronco e pernas foram arremessadas por cima do teto do veículo. Como um boneco de pano, seus joelhos ainda batem no teto e o corpo se precipita violentamente no ar, sendo arremessado para cair no asfalto já por trás do veículo. O carro, desgovernado, avança sobre o canteiro central provocando um barulho enorme das rodas batendo no meio-fio, estourando os pneus para, finalmente, parar atravessado na faixa de velocidade da mão contrária, onde o caminhão avançava na velocidade máxima permitida na via. Outro rasgado de pneus. Um barulho ensurdecedor da batida e do arrastado do veículo pelo asfalto. Depois, um silêncio fúnebre toma conta daquele trecho. Pessoas atordoadas tentam atinar para o que teria acontecido. Menos de dez segundos e três vidas se perderam para sempre.
Destroços espalhados pelo asfalto, sangue dentro e fora do veículo de passeio. D. Graça caíra com a cabeça no asfalto, esfacelando o crânio e deformando quase que completamente o rosto. Uma pasta de sangue e restos da massa cinzenta de seu cérebro se espalhava pelo asfalto numa cena só vista em filmes de horror ou em programas policiais sensacionalistas e de gosto duvidosos dos programas televisivos. A bolsa que trazia, foi parar a alguns metros de distância, seus chinelos surrados pararam longe um do outro, o dinheiro que trazia na mão, como de costume, voara pela rua, espalhando algumas moedas ao longe. Seu corpo se debatia involuntariamente como se os músculos se contraíssem e relaxassem sucessivamente numa tentativa desesperada de sobreviver, embora as inúmeras fraturas espalhadas por todo o seu frágil corpo. Pelo rosto disforme, uma respiração ofegante, repleta de sangue a borbulhar a cada expiração. Os movimentos tornam-se mais lentos e aos poucos vão-se diminuindo, até pararem completamente. Aos 39 anos, depois de muito sofrimento, miséria, humilhações de todo tipo e uma vida humilde, totalmente desapegada dos prazeres mundanos, retirava-se do mundo mais uma bela alma ao encontro da paz que o mundo jamais pudera conceder-lhe. D. Graça estava, definitivamente, fora do teatro humano.

* * *

Algumas quadras os separavam da Escolinha de Laís. Marco Antônio jogava conversa fora com a pequena enquanto ouvia uma música no rádio do veículo. Entraram numa grande avenida com trânsito livre. Eram apenas 500 m para em seguida entrarem numa rua secundária e finalmente deixar seu adorado tesouro e continuar viagem para o trabalho quase no centro da cidade. Acelerou o carro que rapidamente ganha velocidade. Como o trânsito estava calmo, pelo menos naquele trecho, Marco Antônio deixou o carro desenvolver velocidade e chegava quase a 80 km/h quando uma mulher atravessa a avenida distraída a poucos metros de distância. Instintivamente, Marco Antônio pisa forte no freio, o carro derrapa no asfalto e desliza na diagonal, rumo ao canteiro central. A mulher, assustada com o barulho dos pneus queimando no asfalto, pula instintivamente para trás, e vai de encontro ao veículo. Marco Antônio a acerta em cheio. O impacto forte arremessa a pobre mulher para cima, que bate com seu corpo no pára-brisa, passando colada por cima do teto e caindo de forma espalhafatosa na traseira do carro, que ainda desgovernado, avança sobre o canteiro central, passando entre duas árvores de pequeno porte e parando atravessado na contramão. Um caminhão que avançava em sentido contrário acerta em cheio a lateral direita do veículo arremessando-o a uns oito metros de distância, deixando-o completamente destruído.
No primeiro impacto, no corpo da mulher, a pequena Laís escapa do cinto, já que a recomendação é que apenas as crianças maiores de dez anos usem aquele equipamento, assim seus corpos terão massa suficiente para que ele as segure com perfeição, devendo, os menores da referida faixa etária, usar equipamento especial. Como ela só tinha cinco anos, quando o carro derrapa e se esquiva para a esquerda, Laís vai parar do lado direito do veículo, batendo forte junto a porta traseira direita. Desacordada, ela nem percebeu quando o caminhão bateu estrondosamente na porta onde ela se encontrava, arremessando-a de volta para o outro lado do veículo, esmagando-a de forma violenta.
Marco Antônio mal abrira os olhos tentando ver algo através do para-brisa quebrado, quando ouve um estrondo. Seus olhos não viam, mas os ouvidos estavam atentos. Na mais completa escuridão, sentiu seu veículo ser empurrado no asfalto, acompanhado de um barulho enorme de pneus arrastando. Em seguida silêncio. Depois, vozes, pessoas acorriam, outros abismados com a violência do acidente, alguns lamentavam clamando por Deus. O carro estava em estado deplorável. Uma lata velha amassada e destroçada, com dois corpos ensanguentados. O motorista do caminhão desce atordoado, e rapidamente lança mão do seu extintor de incêndio, correndo para frente do caminhão. Grudado sobre a frente e com parte da lataria prensada sobre o para-choque do caminhão, estava o que sobrou do carro de Marco Antônio. O veículo fumaçava, mas devido aos equipamentos modernos de segurança, não incendiou. O motorista, atônito, procura alguma coisa, vasculhando com as mãos dentro do veículo, e encontra no bolso da calça de Marco Antônio, um celular, em perfeitas condições de uso. Tenta raciocinar no que fazer, mas não consegue. O que acabara de acontecer era tão inesperado, que o rapaz ficou totalmente sem ação.
Um patrulheiro pára uma moto rapidamente. Tira uns cones de um baú acoplado na garupa da moto e baliza precariamente o trânsito. Chega ao veículo procurando o motorista do caminhão. O rapaz, trêmulo com o celular na mão, se identifica. O patrulheiro tenta acalmá-lo.
— Meu Deus... — balbucia o motorista — uma criança morreu!
— Calma Senhor. Sou Cléssio, patrulheiro rodoviário. Vou acionar o reforço policial e a ambulância imediatamente... Acalme-se. Sente-se no meio-fio.
Com as pernas bambas, olhos parados e fixos em lugar algum, o rapaz é conduzido até o meio-fio, onde se sente desfalecer.
— Senhor, esse celular é seu? — pergunta o patrulheiro.
— Não! — responde o rapaz mecanicamente, como se estivesse perdido no tempo — é do moço que está dentro do veículo...
— Ok Senhor! Deixe-o comigo, vou tentar contatar algum parente da vítima. Por favor, não saia daí.
— Sim Senhor! — responde o motorista com expressão de cera. Seu rosto é um misto de desespero refletido no olhar parado num ponto fixo, como a observar algo visível somente aos seus olhos. Sua expressão era de alguém em desatino. Parecia uma estátua de cera.
O policial vasculha a agenda do celular, e imediatamente disca um número, em que aparentando muita calma, fala com uma Senhora, que se identifica como esposa da vítima. Em seguida, tenta afastar a multidão que começa a se aglomerar, aguardando reforços. Passados alguns minutos, uma mulher grávida se aproxima rápido, amparada pelos braços de um Senhor idoso. Uma viatura já estava no local, e homens balizavam o trânsito, enquanto outros mantinham vigilância sobre o carro abalroado, para prevenir possível incêndio. Não havia mais nada que pudessem fazer.
Ao se aproximar apavorada, os policiais seguram os dois recém-chegados, tentando identificá-los. A mulher grita desesperada ao reconhecer o que sobrou do carro do marido.
— Meu Deus! — grita em desespero, enquanto é amparada pelo sogro. Um policial a segura, evitando que caia. Levam-na até a viatura, e a acomodam no banco do veículo, enquanto um socorrista chega para ajudá-la. A sirene da ambulância dos bombeiros se aproxima, auxiliada por homens da Polícia que facilitam seu acesso.
— Senhor — fala Cléssio atenciosamente —, fui eu quem ligou para a casa da vítima, o Senhor poderia me acompanhar?
— Claro! — responde Seu Joaquim, trêmulo, pois já sabe o que o policial irá lhe exigir.
— Poderia reconhecer as vítimas, Senhor?
— É meu filho! — responde Seu Joaquim com os olhos rasos de lágrimas logo ao reconhecer o veículo destroçado — e minha netinha.
Comovido e respeitoso pela dor de tamanha perda, o policial, gentilmente, pede que ele se aproxime e reconheça os corpos das vítimas, para que o resgate possa encaminhá-los ao Instituto Médico Legal, o que facilitará sua liberação em breve espaço de tempo.
— Precisamos que reconheça os corpos Senhor.
— Os corpos... — balbucia Seu Joaquim, percebendo perplexo o valor daquelas palavras.
— Sim Senhor. Infelizmente, não houve nada que pudéssemos fazer para salvá-los. Foi uma grande fatalidade.
Seu Joaquim, auxiliado pelo policial, aproxima-se do veículo. Seus pés pareciam chumbados ao solo. Não podia acreditar naquilo. Seu único filho, sua única neta. Mortos absurdamente num acidente estúpido.
Os Bombeiros ainda não haviam começado a serrar as ferragens do veículo para retirar os corpos. Contudo, a posição em que haviam ficado, permitia perfeitamente a identificação.
Seu Joaquim se aproximou e olhou para dentro do veículo. Ali estava seu filho esmagado entre as ferragens; sangue por toda parte. O rosto bem preservado, apenas com alguns pequenos cortes de fragmentos de vidro. Na parte de trás, a pequena Laís caída no piso do veículo logo abaixo do banco. A cadeirinha acoplada ao banco traseiro, totalmente intacta.
— Meu Deus! — fala Seu Joaquim, sentindo-se desfalecer — São eles sim.
Desolado, vira o rosto de lado para não ver mais aquela cena. O Policial, lamentando o ocorrido, tenta confortá-lo.
— Uma pena mesmo Senhor. Se a menininha estivesse na cadeirinha, teria se salvado. Parece que seu filho perdeu o controle ao atropelar uma mulher que segundo testemunhas, atravessava distraidamente a avenida.
Seu Joaquim, nada responde, afastando-se para ver como está sua nora.
Carmem ainda estava desacordada, agora sendo auxiliada por um socorrista do Corpo de Bombeiros. Em poucos segundos volta a si. Quando percebe onde está e cai em si, começa a chorar convulsivamente.
— Seu Joaquim, pelo amor de Deus, me deixa ver meu marido e minha filha.
— Não minha filha. Não precisa vê-los agora. Já os vi. Liberei a retirada de ambos, e daqui seguiremos para o IML para solicitar a liberação dos corpos.
— Estão mortos? Os dois? — clamava Carmem como se não pudesse acreditar em tamanho absurdo.
— Infelizmente, minha filha. Eles estão com Deus.
— Não! — sussurra Carmem num choro sentido. Segurando a barriga, acariciando-a como sendo a única lembrança que teria de seu marido.
— Venha, filha. Vou te levar para minha casa agora. Maria vai cuidar de você enquanto eu cuido do resto. Não se preocupe com nada agora. Vamos.
Cuidadosamente, Seu Joaquim acompanha a jovem senhora até o carro, dando uma última olhada para os destroços do veículo de seu filho. Seu coração estava apertado, e sofria não só pela sua própria perda, mas pela de sua nora. Assim como ele acabara de perder o filho e a neta, ela perdera o marido e a filha. Não seria possível avaliar qual deles sofria mais.

* * *

Após o silêncio que se seguiu à frenagem alucinada do caminhão, Marco Antônio tentou atinar para o que acabara de acontecer. Viu uma claridade estupenda dentro do veículo. Uma enfermeira se debruçou sobre a janela quebrada do veículo e tomou a pequena Laís, ainda desacordada, em seus braços. Um rapaz bem jovem se aproxima com um largo sorriso no rosto.
— Marco Antônio, não se aflija. — Fala com voz mansa o desconhecido — Laís já foi socorrida, e está muito bem. Daqui a pouco, você a verá.
— Obrigado... — para a frase, esperando a apresentação do jovem.
— Marco Antônio Nascimento, seu xará — completa o jovem bem humorado.
— O que aconteceu afinal? — pergunta Marco Antônio ainda confuso.
— Um acidente de carro. Mas não se preocupe. Vocês estão bem.
— Sim, percebo — sorri Marco Antônio verificando que realmente não sentia nenhuma dor. Apesar de ver escoriações por todo o corpo.
— Não olhe! — adverte Marco Antônio Nascimento — pegue na minha mão, e saia do carro.
— Acredita mesmo que posso? — responde Marco Antônio, incrédulo diante do que seus olhos podem ver.
— Sim, pode. Venha.
Marco Antônio se levanta sem dificuldade. Sai do veículo, diante de uma multidão que acorre ao local. Bombeiros chegando apressados com as sirenes ligadas. A alguns metros, vê seu pai se aproximar trazendo consigo Carmem. Tenta correr até eles para confortá-los e dizer que está tudo bem e que o acidente não lhes causou nenhum problema grave.
— Agora não xará! — fala sorrindo Marco Antônio Nascimento — em breve os verá, mas por enquanto, serás socorrido, afinal, sofrestes algumas escoriações.
— É verdade —, concorda Marco Antônio sem maiores preocupações — depois, alguém já deve tê-los informado de que Laís e eu estamos bem não é?
— Certamente. — Conforta-o Marco Antônio Nascimento afastando-o rápido do local tendo o cuidado de não deixá-lo olhar para trás.

Alguns metros à frente, param numa pequena tenda improvisada, uma espécie de pronto socorro de campo. Marco Antônio acredita ser do corpo de bombeiros, afinal, pela forma como o atenderam, deve ser mesmo uma equipe muito competente. Uma maca simples logo a direita da entrada, acolhia a pequena Laís, que começava a abrir os olhos. Contente, Marco Antônio se deixa levar até outra maca improvisada, onde se senta enquanto espera que o doutor termine de examinar uma senhora muito ferida que se encontrava desacordada numa maca ao lado. Terminado o atendimento à senhora ao lado, o médico a deixa aos cuidados de habilidosa enfermeira e volta-se para Marco Antônio.
— E então doutor como estou? — pergunta Marco Antônio muito à vontade após algumas observações do jovem médico.
— Muito bem Marco Antônio, nada além de algumas escoriações sem maior gravidade. Vai ficar bem.
— Espera aí — indaga Marco Antônio desconfiado — como sabe meu nome? Não fomos apresentados ainda.
O médico sorria descontraído.
— Sabemos quase tudo sobre você meu caro amigo.
— Mesmo? Como pode ser se não os conheço? — indaga Marco Antônio levantando-se rapidamente da maca.
O jovem médico sorri de novo, e gentilmente o convida a sentar-se outra vez.
— Por favor, ainda não terminei de examiná-lo, mas o seu xará, Marco Antônio Nascimento, que o conhece há bem mais tempo do que nós, vai conversar com você logo que eu termine, aí saberá como o conhecemos. A propósito, sou Tito.
Marco Antônio estava ainda aturdido com aquela inesperada situação. Perguntava-se como estaria aquela pobre Senhora que fora atropelada pelo seu veículo apesar do seu esforço para evitar o acontecido. Na verdade, era uma situação bem estranha. Um acidente de graves proporções, nenhuma dor apesar das escoriações graves em que jurava que tinha se quebrado em muitos pedaços; sua filha bem, acordada e sem nenhum ferimento grave... Tudo muito estranho... Pensou.

* * *

Camilo escovava os dentes enquanto pensava na sua pequena Camila. Saíra de casa há mais de uma semana. Varara quase todo o Brasil, fazendo entregas de mercadorias e renovando novos contratos. Às vezes passava meses sem conseguir voltar, já que para não andar com o caminhão vazio, aceitava fretes sempre que o esvaziava o que o levava às vezes para os confins dos Estados do Norte e Nordeste. Naquela semana tinha dado sorte. Pegara um frete de São Paulo — sua terra natal — na semana anterior, para Fortaleza, e de lá, outro para Floriano e Picos no Piauí. De lá, cruzara a fronteira com o Maranhão e conseguira uma carga para Belo Horizonte em Minas Gerais. Chegara ao destino por volta das 11 horas da manhã daquela quinta-feira. Depois de descarregar, achou melhor descansar. Havia algumas noites que não dormia direito, pois tinha de atingir as metas, seu negócio dependia do cumprimento dos prazos. Naquela semana, havia pegado poucos fretes, mas apesar disso, tinha tido um bom retorno, uma vez que andara em boas estradas e as cargas tinham sido de materiais leves. Estava contente e só pensava mesmo em voltar para casa. A última encomenda era mesmo para São Paulo. Pretendia então descansar uns dois dias em casa para curtir a esposa e sua pequena filha que contava apenas dois anos. Camila era para ele a razão de viver. Sua esposa, Soraya, comentava com uma pontinha de ciúme, que ele dava mais atenção à menina e ao seu caminhão do que a ela. Ele ria e não levava a sério. Na verdade, era louco por crianças, e quando casaram, fizeram planos de ter pelo menos dois filhos. Camila tinha nascido já no segundo ano de casamento. O jovem casal vivia confortavelmente, embora não fossem ricos. O caminhão estava quase quitado. Soraya trabalhava como professora numa escolinha perto de casa, era pedagoga e também adorava crianças. O casal perfeito, dadas as circunstâncias. O único empecilho à felicidade que almejavam era o desejo de comprarem sua casa própria e por fim, Camilo deixar as viagens de lado, pois a jovem esposa não achava seguro as estradas não só pela violência do trânsito mas também pela crescente onda de assaltos nas rodovias do país. Sonhava com o dia em que o marido venderia seu caminhão para investir em algo mais estável e de preferência em sua cidade, ideia não compartilhada pelo marido, que tinha vivido quase que a vida inteira no ramo de transportes, era uma tradição familiar.
Camilo tinha jantado por volta das oito horas da noite num Posto que concentrava muitos caminhoneiros. Terminara de escovar os dentes e pensou que poderia descansar um pouco mais e sair lá pelo meio da madrugada, para chegar em casa por volta das oito horas da manhã da sexta-feira. Ligou para a esposa e contou a novidade, afirmando que o aguardasse logo pela manhã porque estava com muitas saudades de ambas e só pensava em chegar logo para curtir um pouco a família. Desligou o celular e ajustou o alarme para as 2h 30 min da manhã. Deitou-se na cama do pequeno, mas aconchegante apartamento e adormeceu. Um sono perturbado. Não sabia o que havia sonhado, mas era algo angustiante. Pensou na filhinha e conferiu a hora no celular. Faltavam pouco mais de 40 minutos para tocar o alarme. Decidiu tomar um banho, fazer a barba e dar uma revisada no caminhão naquele meio tempo, já que não conseguia mais dormir. Na verdade, desde as 11 horas da manhã, tudo havia sido muito tranquilo, nada o perturbara e tudo correu muito bem. Assim, sairia por volta das 3 horas da manhã.

* * *

Camilo entrou na zona urbana da cidade de São Paulo por volta das 5h 40 min da manhã. Sentia-se em casa. Centenas de vezes tinha feito aquela rota, entrado pela mesma rodovia, era como se tivesse em casa, tão boa a sensação de estar em sua terra natal. Pensava em abraçar sua esposa e pegar sua pequena Camila nos braços e brincar com ela por quanto tempo quisesse. Até havia combinado com a esposa, que naquela manhã não a levaria à creche, na mesma escola onde Soraya trabalhava. Ele fazia questão de cuidar dela, e matar a saudade. O caminhão avançou cidade adentro. Não tinha de encarar o trânsito pesado da manhã rumo ao centro, já que sua casa ficava na periferia. Estava fascinado pela ideia de matar a saudade da família e descansar o resto da semana, voltando ao trabalho apenas na segunda-feira.
O relógio do rádio do caminhão marcava 7h 15 min quando Camilo pegou uma avenida larga e de pouco trânsito. Acelerou até o limite permitido, mas sempre de olho em todos os movimentos, como excelente motorista que sempre fora, apesar da pouca idade. Aos 26 anos de vida, Camilo já tinha mais de dez anos de estrada, trabalhara antes como ajudante de seu pai, e com ele aprendera de tudo o que precisava saber sobre trânsito, estradas, caminhões, fretes, etc. Tudo o que fosse de sua alçada.
O caminhão avançava tranquilo na bem conservada avenida, pela faixa da esquerda junto ao meio-fio do canteiro central. De repente, na via contrária, um carro desgovernado atravessa o canteiro e se precipita na sua frente a não mais de 12 metros. Camilo segura o volante, com firmeza, e pisa no freio com toda a força. O caminhão trava as rodas traseiras e o barulho dos pneus soa alto chamando a atenção dos transeuntes e todos que estavam às margens da rodovia. Apesar de não estar totalmente carregado, o peso do caminhão, aliado à velocidade de 80 km/h, não permitem uma parada instantânea, e o caminhão precipita-se sobre o veículo que parara bem à sua frente com o para-brisa dianteiro estraçalhado pelo corpo de uma mulher que acabara de ser atropelada. Camilo fecha os olhos quando percebe que não conseguirá evitar a colisão. O caminhão acerta em cheio a lateral direita do veículo, empurrando-o pelo asfalto ainda alguns metros antes de parar. Logo que o caminhão pára, Camilo salta imediatamente da cabine e puxa o extintor, seguindo imediatamente rumo ao veículo particular que ficara destroçado com a batida. Aproximou-se e viu o estrago. O carro ficou extremamente danificado, como se tivesse se achatado na vertical. Dentro, um homem ainda jovem estava totalmente esmagado entre as ferragens. Vendo a cadeirinha para crianças no banco de trás, torceu para que não houvesse nenhuma criança a bordo, mas logo que vistoriou com cuidado o que restou do veículo, viu uma garotinha de uns quatro a cinco anos, deitada no piso do carro atrás do assento do motorista. Apavorado, pensou em tirá-la de lá, mas muita gente se aproximava curiosa, enquanto outros tencionavam realmente ajudar. Um deles vendo a situação dos corpos, o aconselha a não tocá-los. Seria melhor chamar uma ambulância.
Camilo sentiu um tremor em todo o seu corpo quando se certificou da tragédia que vitimou aquelas duas jovens vidas. Não fora culpado pelo acidente, mas não podia imaginar a dor daquela família que perdera um pai e uma filha de uma só vez. Pensou em si próprio, na sua esposa e em sua pequena Camila. Seus olhos, marejando, corpo trêmulo, o deixam em estado de choque. Mal pode andar. Um patrulheiro que se aproxima, estaciona sua moto e rapidamente baliza o trânsito e o ajuda a sentar-se no meio-fio. Camilo sequer ouvia o que o homem lhe falava. Profundamente comovido não tinha nenhuma reação, apenas balbuciava repetidas vezes:
— Meu Deus, uma criança morreu... Meu Deus, uma criança morreu...

* * *

Marco Antônio se sentia bem, muito embora não entendesse a situação em que se encontrava. Estava confuso. Marco Antônio Nascimento vendo sua expressão de descontentamento se aproxima.
— E então xará, o que o perturba?
— Na verdade, queria muito mesmo ver minha mulher, e acalmá-la, afinal deve estar pensando o pior. O carro sofreu um baita estrago, e como ela está grávida, temo pelo seu bem-estar.
— Você a verá logo, se for conveniente, eu prometo — conforta-o o novo amigo.
Marco Antônio vai até onde está a pequena Laís e a abraça forte. Ela está consciente e ativa como sempre.
— Papai, quando vamos voltar para casa e vir a mamãe?
— Breve querida, já veremos a mamãe, eu prometo. — Conforta-a o pai carinhosamente.
Desejando mais informações sobre sua situação Marco Antônio prossegue:
— Bem —, fala em tom solene — agradeço mesmo a gentileza de nos socorrer, mas agora que está tudo tranquilo, vou ver minha esposa, e minha família para dizer-lhes que tudo está bem e saímos ilesos desse acidente, e se não têm mais nada a acrescentar, precisamos mesmo ir.
— Infelizmente, ainda não — fala Dr. Tito pondo-se à frente da porta da tenda. — Você precisa saber de uma coisa, mas é melhor que a pequena Laís, não esteja presente.
Imediatamente a enfermeira pega a pequena e se afasta. Marco Antônio, intrigado, tenta protestar, mas Marco Antônio Nascimento o segura pelo braço convidando-o a sentar-se novamente na maca.
— O que você acha que existe após a morte, meu amigo? — pergunta Marco Antônio Nascimento à queima-roupa.
— Dorme-se, por tempo indefinido, acho. Em seguida, o julgamento. Pelo menos assim creio. Vocês não? — indaga nervoso — mas por que mesmo o assunto?
— Bem, preciso que pense... — dá uma pausa o Dr. Tito — acha mesmo que alguém escaparia a um acidente daquela gravidade, sem nenhuma sequela grave?
— Por um milagre, sim. — Responde Marco Antônio — Aliás, deve ser o que aconteceu conosco.
— Infelizmente, meu caro amigo, milagres são bastante raros e vocês não sobreviveram. — Fala sem rodeio o médico — Pode parecer loucura, mas cada caso é um caso, e o de vocês é bem peculiar. Não é normal que uma criança saia consciente de um acidente fatal. Na maioria das vezes, são levadas inconscientes para uma colônia apropriada à sua situação.
Marco Antônio escuta sem nada dizer, pensando que está mesmo na presença de pessoas insanas. Contudo, se contém e escuta paciente.
— Terá sua chance de confrontar suas crenças meu amigo —, complementa Marco Antônio Nascimento – a maioria absoluta das pessoas, independente de como acordam na nova vida, não se dão conta de sua real situação. Nem mesmo quando expostas às provas mais contundentes.
— Que provas? — indaga Marco Antônio confuso.
— Na verdade —, intervém o doutor — até agora, o que expomos não faz o menor sentido para você, por isso, às vezes é necessário confrontar o que dizemos com a realidade. É um golpe duro e a maioria não suporta sem perder a consciência, às vezes por um longo período. Indefinidamente, diria. Creio que muitas pessoas realmente caem num sono profundo, sem previsão de acordar, por isso a Bíblia relata algo parecido com o tal sono que nossos crentes atuais afirmam existir.
— Espera aí —, pede a palavra Marco Antônio — o que poderia ser tão horrendo que tiraria de uma pessoa a sua sanidade?
— Ver o próprio corpo sem vida — dispara Marco Antônio Nascimento à queima- roupa.
— Como assim? — indaga Marco Antônio ainda mais perplexo.
— A questão é a seguinte: — conclui o Dr. Tito com autoridade. — Você pode aceitar o que dizemos agora, que vocês estão mortos, e nos seguir. Se nos acompanharem, entrarão numa nova vida, onde aprenderão muitas coisas e se integrarão a outras na mesma situação, num local próprio, longe daqui, claro. Ou pode não aceitar o que afirmamos e ter de passar pelo doloroso e desnecessário confronto, em que verá seu corpo sem vida, funerais, choros, e todo o resto que você já conhece muito bem, já que viu e participou de funerais antes.
— Tenho a impressão que isso é uma pegadinha, um trote, ou uma brincadeira armada por alguém, aliás, de muito mau gosto. Estão afirmando que se eu for lá fora agora, verei meu corpo dentro daquele carro, e o da minha filha também?
— Na verdade, não — interfere Marco Antônio Nascimento na conversa — porque simplesmente não estão mais lá.
— Como é? Já resgataram nossos corpos? Se é que estão mesmo falando a verdade. — Fala Marco Antônio visivelmente alterado.
— Sim amigo —, fala Dr. Tito em tom paternal — isso foi pela manhã, estamos já às oito horas da noite no horário terreno. Isso é bom, porque se você decidir mesmo confrontar os fatos ao que chama de teoria terá o benefício de não ver o pior: a autópsia.
Marco Antônio não pôde conter o riso. Depois tocou com as mãos no próprio corpo e como se estivesse até gostando da brincadeira, faz uma cara de completa incredulidade, pensando que seus interlocutores deveriam ponderar no absurdo que acabavam de afirmar, pelo menos era a lógica.
— Estão querendo me dizer, que se eu olhar lá fora, estará tudo escuro?
— Absolutamente. Há bastante luz lá fora, mas não verá a avenida nem o local onde seu carro sofreu o acidente. Você não está mais na cidade de São Paulo meu caro.
— Isso não é possível, a menos que eu esteja mesmo perdendo a sanidade. — E corre em direção à porta sem que ninguém o detivesse dessa vez.
Põe a cabeça para fora. Não satisfeito, sai da tenda e não reconhece o local onde se encontra. Realmente não era uma cidade, muito menos São Paulo. Estavam sobre uma colina. Grama muito verde, uma imensa árvore no topo, uma suave brisa a soprar o fez lembrar dos tempos de criança. Abaixo, uma planície, quase infinita. Luzes ao longe, como um pequeno lugarejo distante. Não satisfeito, dar a volta na pequena tenda e realmente se certifica de que não é um trote. A menos que esteja louco, aquelas pessoas lá dentro tinham razão. Ou pelo menos parecia ter.
Cabisbaixo, volta vencido pelos fatos.
— E minha filha? Para onde a levaram? Porque se não há nada lá fora, como pude comprovar, e ela não está aqui, suponho que a levaram para o tal lugar “apropriado”!
— Sim, ela está muito bem, mas num lugar próprio à sua situação no momento. Não se preocupe, pois em breve a verá, eu prometo. — Afirma o doutor com autoridade.
— E então Marco Antônio? — pergunta Marco Antônio Nascimento — podemos seguir viagem daqui mesmo, ou prefere sentir dores desnecessárias que te tirarão a paz por tempo indefinido?
— Já que parece mesmo terem razão, então me esclareçam — fala Marco Antônio em tom de reflexão — por que comigo as coisas se dão assim e com outras, segundo vocês mesmos, é tão diferente? Se Deus é justo, não deveria dar a todos os mesmos direitos e as mesmas oportunidades?
— Sim meu caro — esclarece Dr. Tito — Deus é justo, e por sê-lo, deu a todos nós a liberdade de escolha, a qual todos chamam de “livre arbítrio”. Através do livre arbítrio, somos livres para escolhermos o que fazer e o que acreditar. A conduta de cada um no mundo determina o tipo de apoio que terá, quando tiver que abandonar a vida física e retornar à verdadeira vida.
— Como assim, retornar? — indaga surpreso Marco Antônio — Por acaso a vida na terra não é de verdade?
— Em termos, sim. Contudo, ela só parece ser definitiva, mas é efêmera. Por mais que dure a vida na terra, ela representa bem pouco diante da vida da alma. A alma, o ser pensante, ou “espírito”, como preferem alguns, essa sim, tem vida definitiva. O corpo é uma “ferramenta útil” da qual a alma se utiliza para cumprir determinadas tarefas. Acredite meu caro, essa não é a primeira vez que você passa por isso, e certamente, não será a última.

Marco Antônio não parecia acompanhar o raciocínio do Dr. Tito. Por mais que tentasse, não conseguia entender, com perfeição, o que ele queria dizer.
— Está afirmando doutor, que embora eu não lembre, não faça a menor ideia de nada do que você afirma, isso é uma verdade inconteste? Ou seja, todos, independente de crença, morrem várias vezes e vão para sabe lá Deus onde, e voltam de novo a se servir de um corpo como se fosse uma ferramenta, e por fim, retorna para esse mundo confuso em que estou, para depois voltar e repetir tudo de novo, mesmo que as crenças do mundo afirmem ser impossível? Se isso é mesmo verdade, porque o bom Deus não nos permitiu lembrar o passado e evitar toda essa burocracia de ser esclarecido pacientemente toda vez que esse “fenômeno corriqueiro” acontece? Admita doutor, o que você fala não me parece coerente com a justiça e misericórdia do ser que imagino existir.
Entendendo as inquietações que o afligiam, prossegue inspirado Dr. Tito:
— Não seria coerente se você já soubesse de tudo o que precisa saber. Ou, como prefiro, se você tivesse relembrado todas as suas vivências. Se tal tivesse acontecido, você certamente não estaria me questionando. Contudo, adianto-lhe que ainda é cedo para que tudo faça sentido para você. Em breve, verás pessoas que há muito não via, e elas o ajudarão a entender e aceitar a situação em que se encontra. Até lá, suas escolhas determinarão o suporte que terá. Saiba meu caro Marco Antônio, que você é um caso bem singular. Não pense que todas as pessoas têm uma equipe à disposição para esclarecê-las no momento da passagem. A esmagadora maioria se entrega de tal forma ao cotidiano do mundo, que praticamente se anula como essência, como seres pensantes e imortais. A sede de ser e ter, da forma como a sociedade terrena educou suas gerações nos últimos séculos, levou as pessoas a escravizarem-se aos bens de consumo, e isso as cegou para a essência da vida. E ao saírem do vício em que se comprazem na vida terrena, estão totalmente alheias às verdades imortais, aquelas que atravessam os séculos e acompanham o progresso do gênero humano. Somos todos imortais, mas muitas vezes morremos ao vivermos no mundo por apenas alguns anos. E eis que temos de reaprender tudo outra vez tendo que nos livrarmos do lixo ao qual nos acostumamos por anos a alimentar nossas mentes. Veja por exemplo aquela Senhora que você involuntariamente atropelou. D. Graça é um espírito de Escol. Uma bela alma a irradiar luz por onde passa. Sua vontade de servir é tão grande, que inúmeras vezes tem voltado à terra nas piores condições possíveis, notadamente as que exigem maior empenho e perseverança para não sucumbir. Na atual existência, ela viveu uma mãe solteira frágil, debilitada por algumas complicações de saúde, pobre, negra, o que no mundo, infelizmente, ainda é motivo de segregação social, e ainda assim cumpriu o seu papel fielmente. Jamais reclamou da vida, muito pelo contrário, sempre agradecia a Deus pela oportunidade de servir diante das mais angustiantes situações. Guardou sempre o coração livre do ódio e do sentimento de vingança, constantemente abençoando aqueles que a feriram cruelmente, pois através deles sua perseverança era submetida à prova. Com tal conduta, sempre teve todo o apoio de nossa esfera. Prestimosos amigos a acompanharam desde o momento em que aportou o mundo material, não a abandonando nenhum minuto até o momento trágico do qual você fez parte. Ah meu caro amigo, se soubesses quanto uma alma assim é amada, se soubesses o quanto é engrandecedor servir ao lado delas... Quando retornam a esse mundo, logo alçam vôo rumo as mais altas esferas do nosso plano, onde honrosos e grandes projetos as aguardam. Esporadicamente, com a permissão do Alto, retornam à matéria a socorrer um ou outro ente querido que ficou para trás. São os ilustres anônimos que servem dignamente ao nosso Pai sem exigir sequer reconhecimento no mundo. Sim, são almas que avançaram rumo à perfeição, por isso, com seus próprios méritos galgaram os mais altos postos nesse mundo. Nós, por outro lado, estamos ainda nos arrastando penosamente para progredir. Contudo, não veja jamais motivo para alegar injustiça, nem mesmo para ter inveja. “A cada um será dado, segundo suas obras”, não esqueça essa frase memorável do Divino Mestre. Na terra, em se tratando de recompensas materiais, essa máxima nem sempre é válida, pois desonestos e violentos adquirem fama, dinheiro e poder, sem jamais seguirem a ética e a justiça, mas não entenda que pelo fato de evoluírem socialmente signifique que cresceram moralmente, muito pelo contrário. Aqui, diferentemente do mundo material, o dinheiro e a fama nada valem. O que se traz e o que se leva para qualquer lugar, são as conquistas morais e intelectuais, bem como os vícios que determinam a má conduta de muitos. Quisera eu, poder esclarecer a todos na terra; fazê-los sentir a presença amorosa de Deus em seus corações nas mais aflitivas situações. O que nos é permitido fazer é amparar e orientar, sem, em hipótese alguma, forçar a vontade de cada um. A liberdade, meu amigo, eis o maior de todos os bens. Tão importante que Deus a deu aos homens em último lugar. A partir do momento em que você a recebe, passa a responder por todas as suas ações e eis que a jornada que o levará ao progresso e à perfeição passa a ser conduzida exclusivamente por você mesmo, sempre, até a consumação final, a qual não podemos prever quando nem onde.
Marco Antônio tudo ouvia, agora ponderando o valor de cada palavra do interlocutor. Parecia beber as palavras do doutor como um viajante sedento perdido no deserto. O ar de escárnio que apresentara antes desapareceu como que por encanto. Refletiu sobre sua breve vida, e admitindo as verdades que acabara de ouvir, era mesmo provável que Deus lhe dava naquela hora, bem mais do que merecia. Admitia que pelo ângulo em que a questão fora colocada, era ele um ser pequeno e pretensioso, pedindo mais do que lhe conferia seus próprios méritos e sendo ingrato com tudo o que recebia naquela hora e recebera durante toda a vida. Envergonhado, pediu desculpas pela forma irônica como os tratara antes e, sinceramente, se mostrou agradecido por tê-los naquele momento, pois sem a valiosa ajuda daquela equipe de benfeitores, estaria a vagar sem rumo entre a desilusão e a loucura. Não pôde deixar de sentir pesar por saber que sua esposa, grávida, estaria a sofrer, sozinha, no luto da perda terrível que sofrera, e que seus pais estariam a lamentar as ausências do filho e da neta. O coração apertou fatigado no peito, sufocando-o. Sentiu-se desfalecer.
— Calma Marco Antônio. — Fala com ternura Marco Antônio Nascimento — Estamos aqui para ajudá-lo, meu caro amigo. Sabemos que essa hora é difícil. Ser arrancado de toda uma vida de planos e projetos; de pessoas, afetos, amigos, carreira, e começar quase que na inconsciência, não é tarefa fácil. Contudo, você teve o privilégio de ter uma mente aberta. Muitos não assimilam esclarecimentos imediatos, porque simplesmente não dão ouvidos ao que falamos. Mesmo que lhes mostrássemos a verdade no confronto. O que chamamos de confronto, é mostrar a realidade dura e terrível de que você realmente morreu para o mundo dos vivos, e nunca mais o verão de novo, pelo menos não como antes, com a forma física em que se tornou conhecido ao ser prisioneiro da matéria. Se você os vir de novo, aqui, se reconhecerão, mas a situação será muito diversa da de lá, e se se encontrarem na matéria mais uma vez, jamais se lembrará do que conversamos agora. Por isso, meu caro, é justo dizer que para o mundo espiritual, quem vive no mundo da matéria está morto. O que você acaba de enfrentar é um processo semelhante, embora oposto, ao parto. Sim, meu caro Marco Antônio, ao nascermos, saímos do mundo espiritual, onde temos consciência do nosso real estado, e mergulhamos no desconhecido, um mundo que será forjado primeiro pelos outros, notadamente nossos pais terrenos, e depois pela nossa conduta, que surge como fruto da educação escolar e dos princípios morais adquiridos na família. Some-se a isso a nossa essência, que não está totalmente inativa, apenas dorme, mas com lapsos de lucidez, que se reflete em tendências para o bem e para o mal, e não raro desperta em nossa mente terrena, lá pela adolescência, que é quando o corpo físico nos acolhe inteiramente, sem limitar quase nada daquilo que realmente somos, ou seja, um conjunto de experiências, cujos resultados se tornam transparentes no nosso comportamento, muito embora as mudanças ocorridas nos processos que comportam a vida humana, não mudem jamais nossa personalidade. Somos frutos de vivências, às vezes dolorosas, às vezes alegres, às vezes infrutíferas, às vezes produtivas. As sequelas do nosso passado sempre aparecerão em cada vida que assumimos na matéria, seja através dos traços e marcas no corpo físico, seja através das marcas impregnadas em nossa alma. Assim, é correto afirmar, que beleza e fealdade é questão de referencial, pois nem sempre uma alma bela habita um corpo bonito e vice-versa. Contudo, seu esplendor pode ser notado em suas ações, anônimas ou não, as almas belas se sobressaem das demais pela conduta e pelas suas ações no mundo. A beleza física é algo passageiro, e frequentemente, mais atrapalha do que ajuda em nosso processo de aprendizagem. Já a beleza da alma não conhece limites. A alma bela brilha em todos os ambientes. Seja no mundo material seja aqui, seja nos mundos que habitarão no infinito.

Depois dessa explanação, Marco Antônio finalmente lembrou-se do objetivo daquela conversa. E conformado, olhou agradecido os dois homens à sua frente e falou com segurança:
— Estou decidido! Vamos em frente. Irei onde vocês indicarem ser o melhor para mim. Prometo me submeter às suas decisões até que eu possa seguir meu rumo com meus próprios pés. Entendo agora que sou um mero aprendiz, e se a dor servir para curar a minha alma, então, me mostrem a dor. Se por outro lado, ela só me trouxer infortúnio e sofrimentos desnecessários, então a afastem de mim até que eu tenha forças para suportá-la.

Os dois conselheiros olharam-se surpresos. Não esperavam por aquela atitude. Perceberam que Marco Antônio tinha entendido muito bem o que haviam falado, e compreendiam agora que ele não ousava tomar uma decisão sozinho e correr o risco de falhar. Esperava que eles o orientassem da melhor maneira possível.
Como se o pensamento de ambos fosse apenas um, o doutor tomou a palavra.
— Muito bem meu caro amigo. Sei que tomastes a decisão certa. Por enquanto, sugiro que nos siga. Será levado a uma colônia não longe daqui. Contudo, longe o suficiente do ambiente do mundo, onde as influências de lá não o afetarão. Dentro de algum tempo, poderás rever sua família, mas não podemos prever uma data. Quanto à sua pequena Laís, creio que entendes que ela não é uma criança para esse ambiente. Poderás vê-la mais uma vez na forma da pequena Laís, mas em breve, ela assumirá a forma da vida anterior a essa, é o que ocorre na maioria dos casos. Pode ser um processo longo, ou não, depende mais dela do que dos dedicados amigos que lhe auxiliarão nessa tarefa. Não tema perder as afeições que sempre teve. Ela sempre será devotada e amorosa, embora não conserve a forma infantil que você conhecia. Saiba que você a conhecia na forma anterior. Ela foi sua avó, você a adorava quando criança. Talvez não se lembre bem, já que ela desencarnou quando você tinha apenas 11 anos, mas saiba que ela jamais o esqueceu e em muito o ajudou. Ela sabia que através de você voltaria ao mundo, não para viver indefinidamente, mas para ajudá-lo na partida de volta, pois entendia que se viesse junto com você sua dor seria amenizada, no que convenhamos, ela tinha razão.
Marco Antônio não pôde evitar um sorriso sincero ao recordar da avó, e de quão generosa fora sua atitude. Agradeceu a Deus pela generosidade de enviar aqueles valorosos colaboradores, e com o peito apertado de saudade de casa, de sua esposa Carmem, de seus pais e amigos, não questionou mais. A partir dali, animado a construir uma nova vida, baseada na afinidade e na boa vontade, sentimentos que estava disposto a compartilhar com todos que as circunstâncias pusessem em seu caminho.

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